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Revisão do Guia Alimentar traria mais motivos para evitar ultraprocessados

O consumo de alimentos ultraprocessados está associado a um risco maior de doenças crônicas - iStock
O consumo de alimentos ultraprocessados está associado a um risco maior de doenças crônicas Imagem: iStock

Guilherme Zocchio, de O Joio e O Trigo

Colaboração para o VivaBem

24/09/2020 04h00

Rendeu a discussão motivada pela divulgação de um documento do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) que fala em fazer uma revisão do Guia Alimentar para a População Brasileira. A Nota Técnica nº 42 do Mapa, que vazou para veículos da imprensa e mídias sociais na quinta-feira (17), dirigia-se ao Ministério da Saúde, ao qual cabe dar diretrizes sobre comer de forma adequada e saudável, e despertou manifestações de empresas e da sociedade civil.

Após a divulgação, organizações que representam Coca-Cola, Unilever, Nestlé, Mondeléz, Danone, Bauducco e afins colocaram o time em campo para engrossar o coro pela revisão do Guia, afirmando que é preciso incorporar o avanço da ciência. O problema é que no intervalo desde a publicação do documento oficial do governo brasileiro, em 2014, o corpo de evidências científicas contra os produtos ultraprocessados só fez crescer.

Patricia Jaime, professora da Faculdade de Saúde Pública da USP (Universidade de São Paulo) e coordenadora-geral de Alimentação e Nutrição do Ministério da Saúde no período de formulação do Guia, diz que, quando soube do pedido de revisão, ficou surpresa.

"O surgimento da nota coincide com o período de publicação de várias revisões sistemáticas da literatura científica que apontam e comprovam o papel que os alimentos ultraprocessados têm no desenvolvimento das principais doenças que acometem a população brasileira e mundial: as doenças crônicas não transmissíveis [como diabetes, hipertensão e câncer]", afirmou.

A professora é integrante do Nupens (Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde Pública da USP), responsável pela formulação da base teórica que está no centro da discórdia com a indústria. Uma das pedras fundamentais do Guia é a classificação NOVA.

Trata-se da teoria que divide os alimentos em quatro grupos e derruba alguns pressupostos anteriores dos estudos em alimentação. No lugar dos macronutrientes (proteína, lipídios, carboidratos) e dos micro (vitaminas e minerais), levados em conta na antiga pirâmide alimentar, entraram em cena a extensão e o propósito de processamento dos alimentos.

De acordo com a NOVA, os três primeiros grupos de alimentos têm sido a base da dieta humana por séculos:

  1. Alimentos in natura ou minimamente processados (carnes, frutas, verduras, grãos);
  2. Ingredientes culinários (óleos e sal);
  3. Alimentos processados (carnes em conserva, macarrão, pães caseiros).

Já o quarto grupo, constituído por formulações industriais de substâncias derivadas de alimentos e aditivos cosméticos, é o dos ultraprocessados. Frequentemente, tais itens contam com embalagens coloridas e têm na composição cinco ou mais ingredientes pouco usuais para a cozinha caseira —maltodextrina, um tipo de açúcar, é um caso. Alguns deles são sopas instantâneas, biscoitos industrializados, salsichas, salgadinhos etc.

Ao falar em revisão, a nota técnica do Mapa critica o Guia Alimentar por ele abraçar a classificação NOVA e ter "uma regra de ouro" que diz:

Prefira sempre alimentos in natura ou minimamente processados e preparações culinárias [caseiras] a alimentos ultraprocessados."

Essa máxima extraída do Guia tem um motivo de ser. Os ultraprocessados, pela formulação que têm, geralmente contam com altas doses de sal, gordura, açúcar e outros aditivos alimentares que, em excesso, fazem mal à saúde. Eles estão associados ao desenvolvimento de uma diversidade de doenças crônicas não transmissíveis.

O documento da Agricultura diz que "a classificação NOVA utilizada é confusa, incoerente e prejudica a implementação de diretrizes adequadas para promover a alimentação adequada e saudável para a população brasileira".

A classificação NOVA, entretanto, é uma das teorias mais utilizadas atualmente em pesquisas. Em algumas bases de artigos científicos, como a Pubmed, da área da saúde, por exemplo, ela é indexada mais de 400 vezes.

Além disso, desde que foi cunhada, a teoria embasou uma diversidade de estudos que referendam os seus fundamentos. Mais recentemente, três artigos científicos endossam a mensagem do Guia, contraindicando o consumo de ultraprocessados.

Em fevereiro de 2020, um artigo publicado no International Journal of Food Sciences and Nutrition mostrou uma relação entre o consumo de ultraprocessados e o excesso de peso, hipertensão, dislipidemia (colesterol alto) e síndromes metabólicas.

O resultado é semelhante ao de outro trabalho publicado cinco meses depois, no British Journal of Nutrition, que concluiu que altos níveis de consumo de ultraprocessados estavam relacionados ao aumento de sobrepeso e obesidade (+39%), circunferência da cintura (+39%) e síndrome metabólica (+79%), além de níveis baixos de colesterol "bom" (+102%).

Em agosto deste ano, um estudo publicado no International Journal of Obesity revelou que pessoas que consomem ultraprocessados regularmente têm chance 26% maior de desenvolver sobrepeso e obesidade.

Os três artigos mencionados merecem um destaque especial porque seguem um modelo chamado de "revisão sistemática". Esse tipo de estudo tem um grande valor científico porque, como diz o próprio nome, analisa sistematicamente a bibliografia existente.

Linhas gerais, os pesquisadores usam uma metodologia rígida para vasculhar tudo que já foi publicado sobre um tema. Além disso, avaliam e qualificam a metodologia dos outros estudos, apontam falhas ou lacunas no conhecimento criado e servem como base para tomada de decisões por gestores e formuladores de políticas públicas.

Pedidos de revisão

Batatas frita pronta; batata smile; fritura - Getty Images - Getty Images
Não se deixe enganar pela aparência. Em excesso, alimentos ultraprocessados fazem mal à saúde
Imagem: Getty Images

No calor das discussões sobre a nota do Mapa, corporações do setor de alimentos aproveitaram do momento para afirmar que defendem uma revisão do Guia. Elas têm no portfólio refrigerantes, produtos lácteos, biscoitos industrializados, salgadinhos, entre outros itens considerados ultraprocessados. Por isso, não têm simpatia nem pela classificação NOVA, muito menos pela regra de

ouro do Guia Alimentar.

Em nota, a Abia (Associação Brasileira da Indústria de Alimentos), que representa essas empresas, afirmou que apoia "a constante revisão, à medida em que a ciência avança".

Na mesma nota, a Abia cita um estudo que diz que a diretriz brasileira sobre alimentação estaria entre as piores do mundo. No entanto, os autores da pesquisa mencionada se manifestaram pouco tempo depois dizendo que a associação de empresas distorceu as conclusões.

"Fiquei chocado de terem tentado usar um estudo como o nosso, que pede diretrizes dietéticas mais ambiciosas, para argumentar exatamente o contrário. Esse foi claramente um caso de deturpação e referência indevida", declarou a uma reportagem do jornal O Estado de S.Paulo o cientistas Marco Springmann, que assina o estudo ao lado de Anna Herforth.

O Joio e O Trigo procurou a entidade empresarial para entrevista, mas a Abia não respondeu às solicitações da reportagem.

O posicionamento da associação, porém, não é um ponto sem nó. Dois meses antes de a nota técnica do Mapa tornar-se conhecida, o presidente-executivo da Abia, João Dornellas, reuniu-se com a ministra Tereza Cristina tendo como pauta um pedido de revisão do Guia. Conforme o Joio apurou, a solicitação prosseguiu por ordens dela.

Procurado por meio da assessoria de imprensa, o Mapa afirmou que a nota técnica é uma minuta de documentos internos sobre um assunto que ainda está sendo debatido internamente.

O Ministério da Saúde também foi procurado pelo Joio para se manifestar sobre as discussões em torno do Guia. Por meio da assessoria de imprensa, a pasta "informa que recebeu e analisa as considerações do Mapa".

Para a nutricionista Jaime, uma eventual revisão do Guia Alimentar deveria passar a considerar outros temas em que há mais evidências científicas, como o consumo de carnes, que também vem sendo associado a problemas ambientais e de saúde.

*Colaborou Victor Matioli