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Cuidar da mente para uma vida mais harmônica


Autocuidado não é só rotina de skincare: veja como se autocuidar de verdade

Apesar de cuidar da pele poder ser um momento de autocuidado, o conceito engloba muito mais do que isso e vai além da estética - iStock
Apesar de cuidar da pele poder ser um momento de autocuidado, o conceito engloba muito mais do que isso e vai além da estética Imagem: iStock

Ana Prado

Colaboração para o VivaBem

06/06/2020 04h00

Pelo menos nos últimos cinco anos, o autocuidado nunca foi tão popular no Brasil quanto agora. O volume de buscas pelo termo no Google vem aumentando significativamente desde março, quando cidades brasileiras começaram a entrar em quarentena, e atingiu o seu maior nível no mês de maio. No Instagram, a hashtag #autocuidado traz mais de 1 milhão de fotos, boa parte fazendo referência a dietas, malhação, ioga e produtos cosméticos.

Mais recentemente, vem surgindo também a tendência de usar o termo para se referir a coisas prazerosas: ler um bom livro, receber massagem, maratonar séries. Julgando-se pelas imagens, pode parecer coisa de quem tem dinheiro ou, no mínimo, tempo sobrando. De fato, a indústria do autocuidado é bilionária. Segundo relatório publicado em novembro de 2018 pela a empresa de big data e análise preditiva IRI, esse mercado movimenta US$ 450 bilhões só nos Estados Unidos.

Mas não foi sempre assim. Em sua tese de doutorado pela Universidade de São Paulo, a socióloga Maria Regina Cariello Moraes analisou o aumento da preocupação com a saúde e o autocuidado nas últimas décadas a partir da forma como a mídia tratou desse tema. Segundo a pesquisadora, a concepção de saúde enquanto bem-estar, que pode ser otimizada com a adoção de um estilo de vida considerável saudável, vem dos anos 80 e 90. "Isso coincide com a imposição mundial de políticas públicas neoliberais, que procuram transferir a responsabilidade pela saúde para os indivíduos a fim de desonerar os Estados", explica.

Antes, no Brasil, a preocupação com o autocuidado voltado para a saúde não só era algo incomum, como até causava estranhamento ou mesmo zombaria. O tema começou a ganhar mais destaque a partir de 1995, inicialmente em meios de comunicação voltados para as classes média e alta. "Somente no século 21 as campanhas pela vida saudável foram intensificadas e alcançaram toda a população. Os hábitos saudáveis (que incluem exercícios físicos, alimentação adequada e cuidados com a mente e as emoções) passaram a ser recomendados por médicos e tornaram-se obrigação social", afirma.

Confundimos autocuidado e a aparência... Mas por quê?

De onde vem a associação tão intensa do autocuidado, inicialmente ligado à saúde, com a aparência? Moraes explica: "Hoje, vigora a ideia de que a saúde pode ser expressa na aparência", ou seja, ter um corpo esculpido ou um rosto sem as marcas da idade é a comprovação de que houve um "investimento" de tempo e disciplina em exercícios físicos e na saúde da pele, dois dos pilares da saúde —além do fato de que uma pele bem cuidada pode aparentar uma noite de sono mais reparadora. "Os traços de envelhecimento ou a gordura são vistos como sinais de que houve pouco cuidado consigo e passam ser associados ao adoecimento", finaliza.

Para ela, essa concepção de saúde é excludente, pois exige tanto recursos monetários quanto tempo, ambos escassos para uma parcela majoritária da população. "Os jovens trabalhadores das camadas pobres também almejam um corpo considerado saudável, mas nem sempre contam com tempo livre para exercícios físicos, por exemplo, nem podem escolher adequadamente sua alimentação", completa a socióloga.

As rotinas de skincare mostram também essa faceta de consumo. Para cumpri-las adequadamente, normalmente existe um grande número de passos em que são indicados diversos produtos bastante caros: séruns, cremes, máscaras, etc.

Mas isso tudo é mesmo autocuidado?
Na área da saúde, autocuidado é um conceito chave e a enfermeira americana Dorothea Orem (1914 - 2007) é referência no assunto. Nos anos 50, ela formulou a noção de autocuidado como um conjunto de ações de cada indivíduo para a manutenção da sua própria saúde e bem-estar. Essas ações, universais, são bem mais simples (e baratas) do que as fotos no Instagram podem fazer parecer e incluem coisas básicas como a ingestão suficiente de ar, água e alimentos e o equilíbrio entre solidão e interação social e entre a atividade e o descanso.

A enfermeira Camila Silva Martins aplica esse conceito diariamente em sua vida profissional e também na pessoal. "Na enfermagem, trabalho com a promoção do autocuidado e vou sempre associar isso a coisas básicas visando à sobrevivência. Não temos essa visão gourmet do cuidado que se tornou tão comum", conta. "O que eu vejo hoje são pessoas que sabem tudo sobre skincare, mas não sabem o passo a passo da higienização correta das mãos. Será que podemos dizer que elas estão realmente se cuidando?".

"Alimentar-se de forma adequada, fazer exercícios físicos, dormir bem e administrar o estresse, por exemplo, são formas de autocuidado", explica Monique Tello, médica no Hospital Geral de Massachusetts, instrutora clínica da Escola de Medicina de Harvard e autora do livro Healthy Habits for Your Heart ("Hábitos saudáveis para o seu coração", em tradução livre).

Motivação como chave

Mas, além da manutenção do corpo para a sobrevivência, o autocuidado também visa o bem-estar. E aí é que está o maior desafio para muita gente. "Acredito que, hoje, o aspecto que mais precisa ser trabalhado por todos nós é aquele diretamente ligado à saúde mental. Precisamos criar alguns mecanismos de escape individuais", afirma Martins.

A enfermeira faz plantões de 12 horas em dias alternados, incluindo sábados, domingos e feriados. Quando está em casa, passa grande parte do tempo cuidando do filho de um ano. Para se distrair, gosta de fazer coisas simples e já integradas à sua rotina, como cozinhar e ver séries. "Eu gostaria de praticar meditação e exercícios físicos, mas isso é algo que demandaria muito esforço da minha parte e não acredito que seja hora de fazer grandes mudanças de hábito", confessa. "Agora é o momento de fazer aquilo que você gosta, que te faz feliz —dentro da sua casa, é claro".

Ter essa consciência é importante para enfrentar a pressão para ser produtivo na quarentena. "Faça ginástica em casa, pratique yoga com aulas online, tome vitaminas que aumentem a imunidade, alimente-se corretamente, mantenha-se calmo, resiliente e otimista, vista-se bem e cuide da aparência nas lives são algumas das recomendações somadas às várias precauções para evitar a covid-19", enumera a Moraes. Mas quanto disso é realmente necessário?

Para Tello, o segredo está na motivação para fazer as coisas. Nesse sentido, o autocuidado até pode assumir a forma de um ritual de beleza ou uma rotina de skincare —desde que tenha como propósito fazer com que a pessoa realmente se sinta bem e não seja uma imposição social. "Uma ida ao salão de beleza pode fazer com que a pessoa se sinta revigorada e ser tão eficaz quanto a meditação para ajudar a sair do estresse", explica. Da mesma forma, se você se exercita ou come vegetais porque quer cuidar da saúde, está se cuidando. Mas a situação muda se estiver fazendo isso porque acha que precisa emagrecer para se encaixar em padrões estéticos.

A motivação também é a chave para desfazer outra confusão comum envolvendo o termo. Muita gente acredita que sacrificar o sono para maratonar uma série ou gastar mais do que deveria em compras online entram nessa categoria, já que trariam prazer naquele momento. Mas esse comportamento tem outro nome. "Por definição, autocuidado tem de ser algo que irá promover ou fortalecer a sua saúde e bem-estar. Quando se trata de algo capaz de trazer somente uma gratificação imediata, estamos falando de autoindulgência", explica a médica. "É o que ocorre também quando a pessoa come em resposta ao estresse, se automedica ou se envolve em qualquer outro comportamento associado ao vício, como jogatina ou drogas, por exemplo".

Vencendo a culpa

Um grande problema causado em grande parte por essas confusões envolvendo o autocuidado é que muitos acabam achando que ele não é importante, ou até sentem culpa ao praticá-lo. "Muitas pessoas, especialmente mulheres, focam demais em cuidar dos outros e se esquecem de si mesmas. Existe uma pressão cultural generalizada para continuarmos nos esforçando, para ignorar as nossas necessidades físicas e emocionais — o que invariavelmente leva a estresse crônico, esgotamento, depressão", explica Tello.

A jornalista e pesquisadora de questões de raça e negritude Júlia de Miranda sabe bem disso. Ao se ver tendo sua primeira crise de ansiedade em meio à pandemia, ela percebeu a necessidade de intensificar suas práticas de cuidado —especialmente aquelas que envolviam tirar um tempo para si mesma. "Em um mundo tão bélico e competitivo como o nosso, o autocuidado é uma prática revolucionária porque envolve se aceitar, se querer bem e se sentir segura para dizer 'não' sem culpa. Precisamos estabelecer limites e saber que isso não é egoísmo, mas questão de sobrevivência", afirma Júlia.

Para ela, isso é fundamental em sua vida como ativista. "Só assim é que a gente consegue o fortalecimento individual necessário para a luta coletiva. Não adianta querer mudar o mundo sozinho, nem deixar de se cuidar: para mudar o mundo, ou mesmo para cuidar de outros, é preciso estar viva. E bem".

Tello gosta de fazer uma analogia simples, mas precisa: "Em todas as viagens aéreas, os passageiros são lembrados de que, caso algo aconteça, cada um deve colocar a máscara de oxigênio em si mesmo antes de ajudar outros. A razão é clara: se você fica inconsciente, não vai conseguir cuidar de ninguém. Nós precisamos nos lembrar de que o autocuidado é a nossa máscara de oxigênio".

Três ações básicas para o autocuidado

1. Comer de forma saudável, independentemente do seu peso
Ter uma dieta saudável não está necessariamente ligado à balança. Comer bem significa incluir legumes, vegetais, frutas e outros alimentos que irão contribuir para o bom funcionamento do seu organismo, bem como evitar aqueles com alto teor de açúcar ou sódio. "Há muitas mudanças acontecendo no nosso corpo no nível molecular quando temos uma dieta saudável, e elas não têm nada a ver com peso", afirma Monique Tello.

2. Exercitar-se, mesmo que isso signifique uma simples caminhada
O exercício físico ligado ao cuidado não exige dinheiro nem precisa ser um compromisso com hora marcada. Para quem não tem muito tempo, pequenas ações que movimentem o corpo, como trocar o elevador pela escada de vez em quando ou caminhar até o mercado em vez de pedir delivery já podem ajudar.

3. Cuidar da sua rotina de sono
Muita gente configura alarmes para acordar, mas também é importante ter um indicando a hora de ir para a cama. "Ter uma hora certa para acordar e para ir dormir ajuda a ter um padrão de sono melhor", explica Tello. Evitar mexer com o celular na cama é outra recomendação básica. "A luz emitida pelos aparelhos eletrônicos pode realmente alterar as ondas cerebrais e atrapalhar seu sono", completa.