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Mariana Varella

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Por que ocorrem abusos em serviços de saúde?

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Imagem: istock

Colunista do UOL

13/07/2022 04h00

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Não há quem não tenha se chocado com o caso de estupro perpetrado pelo anestesista Giovanni Quintella Bezerra, em um hospital da Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro. Nas cenas divulgadas, o médico aparece estuprando uma grávida sedada, durante uma cesariana.

Muita gente se perguntou o que leva um homem a abusar de uma mulher inconsciente, enquanto dava à luz. Será que ele tem algum transtorno mental ou é apenas um mau-caráter machista?

Para ser sincera, pouco me importam as motivações do médico, que devem interessar a quem for julgá-lo criminalmente. A pergunta que a sociedade deveria se fazer é outra. Como profissionais de saúde conseguem cometer abusos, não apenas sexuais, com tanta facilidade e frequência?

Obviamente, abusos sexuais ocorrem em todos os locais: dentro de casa, nas escolas e universidades, nos escritórios, no transporte público. Nenhuma mulher está a salvo. Mas assombra imaginar que profissionais que deveriam cuidar da saúde das pessoas cometam abusos em momentos em que as mulheres estão em situação de extrema vulnerabilidade, entregues fisicamente nas mãos daqueles que deveriam ampará-las.

O médico Roger Abdelmassih, condenado por 52 violações e 4 tentativas de estupro, cometeu abusos durante décadas, dentro de sua clínica. O alvo eram mulheres de todo o país que pagavam verdadeiras fortunas para conseguirem conceber um filho com um dos especialistas em infertilidade mais renomados do país. Ninguém sabia? Nenhum funcionário ou colega viu nada?

Segundo levantamento do jornal O Globo, apenas no estado do Rio de Janeiro foram cometidos 177 abusos sexuais em serviços de saúde entre 2015 e 2021, um caso a cada 14 dias. A GloboNews fez um levantamento parecido no estado de São Paulo: em 2017, aconteceram 345 casos, quase um por dia, em estabelecimentos de saúde. E esses são os casos denunciados.

Em 2014, ocorreu na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) a CPI dos Trotes, que buscava apurar violações aos direitos humanos cometidas nas faculdades paulistas. Ficou evidente, para quem não sabia, que as faculdades de Medicina eram palco de inúmeras violações.

Violências contra alunos homossexuais e mulheres eram frequentes; rapazes que não se encaixavam no estereótipo dos jovens que desfilavam seus dotes físicos na atlética da faculdade relataram vários abusos. Meninas contaram terem sido vítimas de estupros.

Tantos casos assim ocorrem porque a sociedade protege os abusadores, dentro e fora dos serviços de saúde. Quando algo foge do esperado, como no caso do anestesista, que foi filmado pela enfermagem, eles em geral são pegos, pois não costumam ser cautelosos, sinal evidente de que confiam no sistema do qual fazem parte.

Se conseguem abusar de forma tão escancarada de inúmeras vítimas, é porque contam com o silêncio de colegas. É porque os locais onde trabalham permitem que eles atuem burlando normas e protocolos. É porque os conselhos profissionais ignoram denúncias. É porque, em suma, exercem posição de poder inconteste em uma sociedade machista que pouco valoriza as mulheres.

Por sorte, esses médicos e profissionais de saúde não são a maioria. Conheço muitos que levam o código de ética da profissão a sério, que exercem seu trabalho com honestidade, que se interessam de fato pelos pacientes. No entanto, eles carregam o peso de um sistema difícil de enfrentar, que, no caso dos médicos, começa ainda na faculdade.

É preciso que haja mudanças na formação de médicos e profissionais de saúde para que os estudantes desenvolvam habilidades que vão além do currículo, e que haja mais diversidade entre alunos e professores.

As faculdades devem levar a sério as denúncias de violações a direitos humanos, e os conselhos também precisam se posicionar com mais frequência acerca de condutas questionáveis, quando não criminosas, dos profissionais.

Hospitais e serviços de saúde devem exigir o respeito a protocolos, e aqueles que tentarem burlá-los precisam ser enfrentados. Nenhum profissional pode estar acima de questionamentos e gozar de privilégios que não são dispensados aos demais, tampouco praticar assédio moral contra subordinados.

Enquanto a sociedade permitir que haja categorias profissionais praticamente inatingíveis, com poder quase absoluto sobre determinadas pessoas, haverá abusos de toda natureza que provavelmente serão silenciados por quem compactua com eles ou tem medo de denunciar.