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Mariana Varella

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Álcool é associado a problemas, mas segue como nossa 'droga de estimação'

Getty Images
Imagem: Getty Images

Colunista do VivaBem

10/11/2021 04h00

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É incrível a discrepância entre a forma com que a sociedade brasileira encara o uso de álcool e o de outras drogas, lícitas e ilícitas. Substâncias cujo consumo é proibido, como maconha e cocaína, são tratadas como se fossem o próprio Diabo personificado. Pais e profissionais de saúde e educação pintam, ao tentarem afastar os jovens do consumo, um verdadeiro cenário de terror, com direito à presença de zumbis que se arrastam pelos cantos ao consumirem um baseado. Difícil ver um espaço em que o uso de substâncias ilícitas seja discutido com honestidade, com base em evidências e sem os clichês já conhecidos.

Agora peguemos o exemplo de uma droga lícita bastante popular, o cigarro. Se compararmos as restrições de hoje com o modo como lidávamos com o tabaco na década de 1980, a mudança é enorme. Adotamos políticas de controle sobre o consumo, inserimos avisos (de gosto duvidoso, é verdade) nos maços de cigarro, proibimos o uso em locais fechados, como restaurantes e shoppings, vetamos a propaganda em televisão e outras mídias, fizemos inúmeras campanhas informando os riscos de fumar.

Se pensarmos que há cerca de pouco mais de 20 anos professores fumavam nas salas de aula das universidades e funcionários de bares e restaurantes eram obrigados a trabalhar horas em ambientes enfumaçados e insalubres, a mudança foi gigantesca.

Sem apelarmos para ações violentas e persecutórias como fazemos com drogas ilícitas, optamos por intervenções pontuais, baseadas em evidências, para diminuir o número de fumantes. Como resultado, temos uma das taxas de fumantes mais baixas do mundo, menos de 10% da população (Vigitel 2020), muito inferior aos 35% de 1989, ao de todos os países europeus e aos atuais cerca de 13% dos Estados Unidos.

Já com o álcool, a situação é bem diferente. O consumo está tão arraigado em nossa sociedade que é quase impossível pensar em uma reunião social, por mais despretensiosa que seja, em que não se ofereçam bebidas alcoólicas.

Quando falamos de uso de drogas, o moralismo não costuma ser bom conselheiro. Deixemo-lo de lado, portanto. O que nos interessa em saúde pública, entre outros inúmeros fatores, são os custos (social, econômico, para a saúde etc.) que o uso de determinada substância e sua eventual proibição ou comercialização trazem para a sociedade. Quantas pessoas adoecem, morrem e se envolvem em casos de violência e acidentes ao utilizarem a substância em questão? Quais os problemas do seu consumo abusivo para o usuário e a sociedade? E de sua proibição? Qual o impacto que políticas públicas bem desenhadas podem ter no consumo?

No caso do álcool, as evidências acumuladas em anos de pesquisas nos mostram que a maneira como lidamos com seu consumo tem trazido consequências graves

Só em São Paulo, segundo o Detran-SP e o Infosiga, 42% das quase 900 mortes registradas no trânsito entre janeiro de 2019 e julho de 2020 no estado foram causadas por motoristas sob suspeita de embriaguez ao volante.

Pesquisa do Detran-RS constatou que 232 dos 624 (um terço, portanto) motoristas mortos em acidentes de trânsito no Rio Grande do Sul em 2019 haviam consumido bebida alcoólica.

Estudos recentes mostram associação entre o consumo de álcool e casos de violência doméstica e urbana, acidentes, homicídio e suicídio. O álcool está relacionado ao surgimento ou agravamento de dezenas de doenças, como diversos tipos de câncer, hipertensão, cirrose, pancreatite, transtornos mentais, entre muitas outras. Também está associado a comportamentos de risco, como sexo sem preservativo e uso concomitante de outras substâncias químicas.

De acordo com a Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE) 2019, que entrevistou estudantes do 7º ano do ensino fundamental ao 3º ano do ensino médio, 34,6% dos jovens haviam ingerido uma dose de bebida alcoólica com menos de 14 anos, e 47% já tinham passado por ao menos um episódio de embriaguez.

Embora os dados nos alertem para os riscos do uso de álcool, em especial entre os jovens, o mercado é bastante desregulado, e a sociedade, permissiva. Não há controle dos pontos de comercialização nem fiscalização de venda para menores, e as limitações à propaganda são pífias.

Os motivos que levam a aceitarmos e até incentivarmos o uso de determinadas substâncias enquanto condenamos o consumo de outras têm muitas razões, e certamente as evidências de danos sociais e à saúde não são as principais. Se assim fosse, não aceitaríamos que realities shows colocassem à disposição de jovens já sob enorme pressão bebidas alcoólicas à vontade, enquanto torcemos para que façam besteiras que serão divulgadas como entretenimento para todo o país. Não concordaríamos com a publicidade de marcas de bebidas em eventos de todo tipo, tampouco acharíamos aceitável que houvesse bares próximos a escolas e faculdades ou que festas universitárias oferecessem bebidas sem restrições por preços irrisórios a nossos jovens.

Podemos e devemos discutir a forma como a sociedade brasileira pretende lidar com o uso de substâncias químicas, mas precisamos reconhecer que estamos muito atrasados em relação ao tema. Enquanto evitamos qualquer debate acerca da descriminalização de algumas substâncias, mesmo com as evidências de que a proibição gera violência, encarcera jovens negros e periféricos, impede políticas preventivas eficazes e não reduz o consumo, tratamos o álcool como uma substância muito menos nociva do que ela de fato é, com leis excessivamente permissivas.

Em vez de aprendermos com décadas de políticas bem-sucedidas em relação ao cigarro, seguimos no pior dos mundos, ignorando evidências, criminalizando usuários de determinadas substâncias e incentivando o uso do álcool. Nada disso ajuda a diminuir os danos causados pelo consumo abusivo de substâncias e ainda gera outros problemas cujas consequências recaem sobre os mais vulneráveis.