Lúcia Helena

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Reportagem

Fascite plantar: o que fazer com a dor forte no calcanhar ao sair da cama?

Abro os olhos e me espreguiço até sentir o corpo acordar para um novo dia e... ai! Fim do clima de manhã de novela. A dor intensa no calcanhar ao pisar fora da cama me desperta. Sem entender o que teria acontecido com o meu pé, me arrasto feito uma senhora de 120 anos até o banheiro. Uma senhora de 120 fora de forma, bem entendido, porque tem gente que amadurece serelepe.

Os três, quatro, cinco primeiros passos parecem impossíveis. O primeiro metro percorrido é pior que uma maratona. Um minuto depois, ainda dói, mas já consigo insistir em caminhar. E adiante, quando vou do banheiro até a cozinha, resta apenas uma vaga lembrança da sensação dolorosa.

Só que a dor volta quando eu resolvo, à noite, relaxar assistindo à tevê, fazendo eu me arrepender de me levantar do sofá. Dura pouco. Porém, faz valer o que dura. Assim como voltará nas manhãs seguintes, atanazando o início da minha jornada.

Cheguei a pensar que tinha quebrado um osso. O calcâneo, no caso. Ando acima do peso, voltei à academia — seria a sobrecarga na esteira? Mas o osso continuava inteiro. Então imaginei coisas mirabolantes, pisando (dolorosamente) em falso nas tentativas entender por que raios meu calcanhar me castigava.

Já estava conformada em suportar meus cinco minutos matinais de sofrimento. Até que, por sorte, vi nas redes sociais o ortopedista Marcelo Pires Prado falar de uma dor que pega o sujeito de surpresa após um período de repouso. Uma dor tão, mas tão localizada, que dá para o sofredor apontar seu endereço exato — no lado interno do calcanhar. E que some em minutos como se, enfrentando as passadas, acontecesse uma mágica. Era de fascite plantar que ele estava falando.

Sempre achei que essa tal fascite era coisa de corredor. Mas descobri, ao entrevistar o doutor Prado depois, que ela também acomete pessoas em outras situações. Por exemplo, quando a musculatura da panturrilha anda encurtada (e só eu sei o quanto preciso de alongamento!). Ou quando você, feito eu, resolve sair por aí com sapatilhas molinhas e outros calçados com solado flexível, que prometem conforto — mas que, se bobear, golpeiam os andarilhos.

A fáscia plantar

Feito uma faixa, ela é grudada no osso do calcanhar e se estende, rente à pele, por toda a planta do pé até quase alcançar os dedos."Seu tecido é semelhante ao dos tendões, aquelas estruturas que conectam um músculo a um osso", descreve o doutor Prado, que é médico no Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo.

Desde que escolheu a ortopedia, ele focou em pés e tornozelos, aos quais dedicou anos de mestrado e doutorado na USP (Universidade de São Paulo) e uma temporada no Hospital for Special Surgery, em Nova York, nos Estados Unidos. E conta: "Se você puxa os dedos do pé para cima, a fáscia, ligada a músculos responsáveis por seus movimentos, fica tensa".

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Repare que, a cada passo, é exatamente isso o que acontece quando o calcanhar se descola do chão e toda a carga do corpo vai para a frente do pé: os dedos, forçados pelo solo, são flexionados para o alto.

"A tensão da fáscia, nesse instante, protege diversas estruturas: nervos, artérias, veias e músculos que estão ali, na região da sola", nota o ortopedista. "E ainda ajuda a estabilizar o pé como um todo." Ou seja, a fáscia parece ter sido criada para ser tracionada. Mas às vezes não aguenta o tranco e inflama.

Um esporão de gaiato na história

Muita gente desconfia que a dor seja provocada pelo famoso esporão calcâneo, uma proeminência óssea sem causa bem definida, que surge em um local do calcanhar mais próximo do arco do pé, distante de onde a fáscia se adere.

No entanto, se essa faixa de tecido está espessada, ela acaba tocando no tal esporão. Ele, então, irá cutucá-la a cada passo, levando a um processo inflamatório. "O esporão, em si, não dói. A dor é da fascite", ressalta o médico. E nem sempre essa dolorosa inflamação da fáscia tem o esporão por trás.

A causa da encrenca

Aliás, o que deixa a fáscia espessa a ponto de encostar em um eventual esporão no osso costuma ser uma inflamação já instalada, provocada pelo excesso de esforço — como o de quem dá milhares de passos para se preparar para uma corrida.

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"Não tem a ver com o peso corporal", esclarece o doutor Prado, desfazendo a minha hipótese. "Não é uma questão de impacto, de ficar batendo os pés no chão até danificar a fáscia. A fasciste surge quando ela é tracionada demais, repetidas vezes."

O sapato ideal

O doutor Prado está habituado a atender pacientes que resolveram levar na mala das férias uma sapatilha flexível. "Só que, fazendo turismo, andam 100 vezes mais que no dia a dia e, muitas vezes, voltam de viagem com uma fascite plantar."

De acordo com o ortopedista, o sapato ideal pode ter um solado macio, mas nunca flexível. "Ele precisa ser mais rígido. Assim, ao tirar o calcanhar do chão, o calçado não deixa o pé fazer o movimento da passada com tanta eficiência, o que dá um certo repouso à fáscia. Ela termina sendo menos tracionada", justifica.

Para as mulheres, o conselho do médico é usar, como parte do tratamento, um salto de 3 centímetros. "Essa altura relaxa um pouco a panturrilha, o que também alivia tração da fáscia", diz ele.

Alterações posturais

Quem tem pés pronados — gente que, quando anda, toca mais a parte externa no calcanhar no chão — costuma sobrecarregar a fáscia."Assim como pessoas com os pés muito planos ou muito cavos" acrescenta o doutor Prado.

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Diga-se que, quando a curva dos pés é bem acentuada, a fáscia vive naturalmente mais tensa. Os ortopedistas indicam palmilhas para compensar essas alterações e, com isso, tentam acabar com a fascite.

E por que dói depois do repouso?

"Quando dormimos, os pés ficam completamente relaxados, fletidos, caídos", lembra o doutor Prado. "Por isso, após algumas horas de repouso, é como se a musculatura na região plantar ficasse mais encurtada. Daí, quando você pisa no chão, faz um alongamento bruto e repentino de todas as estruturas que estão ali, a fáscia inflamada incluída."

Ela reclama no ato. Os especialistas dão nome para a reação: dor no primeiro apoio. Para evitá-la, orientam que, antes de sair da cama, a pessoa alongue os pés, puxando-os com as mãos suavemente na direção do corpo.

É preciso tratar

A fascite plantar tem características tão próprias que o diagnóstico costuma ser clínico, embora a ressonância magnética possa mostrar borrões brancos em torno da fáscia, normalmente preta na imagem. Isso indicaria uma inflamação que não começou faz tanto tempo.

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"Se o problema já dura, o tom preto na imagem da fáscia é substituído por um cinza esquisito. Ela também aparece espessada, porque vão se formando cicatrizes no lugar do tecido normal", conta o ortopedista. "Logo, deixa de ter a mesma elasticidade e a resistência de antes. Pode se machucar com facilidade e inflamar cada vez mais".

Como é o tratamento

"Quando o diagnóstico é precoce, na maioria das vezes tudo se resolve com estratégias como mudar o tipo de calçado, usar palmilhas, fazer alongamentos, lançar mão de gelo para diminuir a inflamação e, sim, dar um tempo nos treinos de corrida", enumera o doutor Prado. Até a fascite desaparecer, a corrida deve ser trocada por modalidades como bicicleta, transport e natação, que poupam a fáscia.

Se nada disso resolve, o paciente deve ser encaminhado à fisioterapia. E um sucesso é a terapia por ondas de choque. Na verdade, são ondas acústicas aplicadas localmente com um aparelho, aliviando a inflamação e ajudando a reparar os tecidos "Esse tratamento resolve 90% dos casos que persistiram após aquelas medidas iniciais", calcula o médico.

E as infiltrações?

Para os pacientes que, mesmo fazendo fisioterapia, continuam com a dor matinal, alguns especialistas de fato prescrevem infiltrações no calcanhar de corticoides, que são potentes anti-inflamatórios. Mas o doutor Prado tem lá suas ressalvas: "Uns melhoram e outros não, sendo difícil prever o resultado. Sem contar o risco de os corticoides atrofiarem os tecidos, complicando o quadro."

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Vale dar um aviso do médico : há, gente realizando infiltrações sem validação científica com "plasma rico em plaquetas" e afins, usando substâncias proibidas pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). Corra desses engodos, mesmo com o pé doendo.

A saída cirúrgica

Em último caso, os especialistas apelam para cirurgias. Uma das técnicas é remover uma porção da fáscia perto do osso do calcanhar. "Ela será substituída por uma cicatriz, mas fáscia ficará mais relaxada", diz o doutor. Os cirurgiões podem, ainda, usar o bisturi para alongar a panturrilha, se está no seu encurtamento a raiz do problema.

Bem antes disso, porém, tente fazer como eu. Não sou paciente do entrevistado, bom deixar claro, mas aprendi com ele a lição: abro os olhos, me espreguiço e, agora, acordo meus pés puxando-os para cima. Aí, pulo da cama sem sofrer.

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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