Lúcia Helena

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Reportagem

Inteligência artificial: o treino que ajuda o cérebro a melhorar a audição

Como afirmar que uma pessoa escuta bem? Antes, eu responderia de um jeito simplista: é saber se ela ouve, ou não, todos os sons, dos mais graves aos mais agudos, em um volume razoável. Como, aliás, pode revelar o velho e bom exame de audiometria, que era tudo o que tínhamos até 1996.

Naquele ano, porém, foram adaptados para o português falado no Brasil os primeiros testes de processamento auditivo central, mostrando como cérebro interpretava os sons. Ou seja, não mais o que alguém escutava — tarefa da audiometria —, mas como escutava. E isso marca o início de uma outra história, que agora vem ganhando novos capítulos com a ajuda da inteligência artificial.

Neste mês de dezembro, uma das iniciativas vencedoras do Prêmio Veja Saúde Oncoclínicas de Inovação Médica foi uma plataforma digital desenvolvida pela healthtech ProBrain, que usa justamente inteligência artificial para avaliar o paciente e montar um treino sob medida para que ele supere suas barreiras auditivas.

Chamada Audiofoco, ela por enquanto não está sendo oferecida à população porque aguarda a aprovação da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). Mas sua chegada tem tudo tudo para fazer uma ruidosa diferença.

Escute o motivo: até 20% das pessoas apresentam alterações na tal escuta cerebral. E, passados todos esses anos desde os primeiros testes de processamento auditivo, no Brasil ainda hoje somente 2% dos pacientes são diagnosticados e encaminhados para centros especializados. O cérebro de muita gente, portanto, segue interpretando mal o que ouve.

Isso vai além de não compreender as palavras direito: o indivíduo termina com uma dificuldade de foco capaz de atrapalhar os estudos e a carreira. Com frequência, desenvolve depressão. De quebra, corre um risco maior de ter problemas de memória. Nesse cenário, aumentar o acesso ao diagnóstico e ao tratamento é urgente. Esse é o objetivo da Audiofoco.

Pelo computador ou pelo celular, o usuário faz dez testes que contam como anda a sua capacidade de escuta e compreensão. A inteligência artificial, então, identifica as lacunas que o cérebro precisará preencher e as habilidades que ele deveria aprimorar. A partir desse dado, seleciona, entre mais de 200 atividades com jeitão de game, as que seriam ideais para aquele indivíduo trabalhar sua agilidade mental ao lidar com os sinais auditivos

O estudo piloto com 30 voluntários provou que essa estratégia é eficaz: bastou um mês com duas sessões de apenas 30 minutos por semana e todo mundo passou a ouvir melhor, o que ficou demonstrado inclusive por exames da eletrofisiologia cerebral.

O caminho do som

"Os ouvidos ouvem, mas é o cérebro que escuta", costuma repetir Ingrid Gielow, idealizadora da plataforma Audiofoco. Quando era estudante de fonoaudiologia na Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), foi a contragosto que ela, mais interessada em estudar a voz, assistiu às aulas sobre processamento auditivo. Acabou aplicando os tais testes, que eram recém-chegados.

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Pelos resultados, viu que vários pacientes tinham alterações no processo que começa quando as ondas sonoras alcançam o ouvido interno e fazem vibrar as células ciliadas da cóclea, uma estrutura em formato de caracol. Vibrando, elas geram impulsos nervosos que, já no cérebro, seguem por alguns caminhos até ele dar àquilo um significado. Tudo isso leva uns 300 milésimos de segundo.

"Perguntei o que poderíamos fazer por aquelas pessoas que tinham esse processamento alterado e ouvi da professora que os testes apontavam o problema, mas que solução era o que nós tínhamos de encontrar", recorda Ingrid, que se aventurou nessa busca. Chegou a virar pesquisadora associada do Departamento de Neurologia da Mount Sinai School of Medicine, nos Estados Unidos.

A interpretação da nossa cabeça

Imagine uma voz sussurrada. Ao captá-la, os ouvidos disparam sinais que passam, primeiro, pelo tronco cerebral. "Mas, dali, eles se dividem", descreve Ingrid. "Dois terços dos estímulos nervosos que vieram do ouvido direito vão parar no lado oposto do cérebro, o esquerdo, enquanto um terço permanece no mesmo lado. Acontece igual com o ouvido esquerdo: dois terços de seus sinais vão para o hemisfério cerebral direito."

Essa diferença de domínios faz com que você localize de onde veio o som. Mas, além da capacidade de localização, o cérebro precisa de diversas habilidades. Direcionar a atenção é uma delas. "Ora, enquanto alguém fala com você, há o barulho do ar-condicionado, o cachorro da vizinha talvez comece a latir e o caminhão de lixo pode passar na rua. Seu cérebro deve acionar três áreas a mais para focar em um som se, por acaso, está em um ambiente ruidoso", ensina Ingrid. Isso consome mais recursos do córtex pré-frontal, situado na altura da testa, que seria a área das tomadas de decisão. "Muita gente não tem noção de que chega exausta no final do dia pelo esforço do cérebro para inibir os sons que não interessavam", diz ela.

Outra habilidade: "Em uma videoconferência, a internet fica instável e tudo trava por fração de segundo. Mas você não precisa pedir para a pessoa repetir o que dizia porque o seu cérebro consegue, pelo contexto, pescar o som que, na verdade, nunca ouviu."

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Uma curiosidade é que os papéis dos dois hemisférios cerebrais na escuta são diferentes. O esquerdo analisa as palavras, a estrutura gramatical, o sentido mais objetivo Já direito processa as características melódicas. Alguém diz: "Que bonito o que você fez!". Só pela entonação, ele reconhece se é um elogio ou uma bronca.

Para interpretar cada informação sonora, de um lado ou de outro, usa referências acumuladas ao longo da vida e faz aproximações. Assim, ao ouvir uma música, você talvez não saiba identificar o clarinete. Mas, por já ter ouvido sons semelhantes, seu cérebro reconhecerá estar ouvindo um instrumento de sopro.

Até os 7 anos

"Nesse período tudo o que ouvimos fica registrado como padrões que o cérebro usará de modelo", explica Ingrid. "Por isso, uma criança pequena pode aprender uma segunda língua sem sotaque. Mas, entre os 7 e os 11 anos, é como se as portas fossem se fechando."

E isso não vale apenas para fonemas estrangeiros, mas para os mais diversos sons no nosso "banco" de referências. "Para entender o drama, pense que cerca de 25% das crianças brasileiras têm otite de repetição ", diz a especialista. "Sendo assim, um dia ouvem determinada palavra com uma característica sonora e, em outro dia, a secreção abafa a mesma palavra em 30 decibéis. Os registros diferentes farão com que tenham dificuldade para associar os sons às letras na hora da alfabetização."

Pior é quando a falta de registros sonoros adequados atormenta a vida adulta. "A pessoa pode ficar com fama de distraída ou de alguém que faz as coisas de um modo diferente do que foi solicitado. Talvez sua voz soe desafinada. A verdadeira razão disso tudo é que o cérebro não processa bem aquilo que seus ouvidos captam", observa Ingrid.

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Problemas assim podem acontecer até mesmo com quem tem uma audiometria normal. Mas, claro, tudo piora quando a função dos próprios ouvidos vai diminuindo, o que ocorre com boa parte das pessoas acima dos 65 anos. "Parte dos neurônios, então, deixa de ser ativada. Com o tempo, áreas cerebrais ligadas à audição encolhem e isso aumenta a probabilidade de demências", alerta a fonoaudióloga.

Treinar o cérebro

O treinamento auditivo serve para manter esses neurônios ativos. "Quanto mais eu estimulo um circuito neuronal, mais o cérebro entende que as conexões entre aquelas células nervosas são importantes e, então, há um aumento de neurotransmissores ali. Além disso, há uma produção de mielina, substância que, mais do que revestir esses neurônios, funciona como um condutor, aumentando a velocidade do processamento." É possível indicar exercícios até mesmo para induzir mecanismos compensatórios em quem já sofreu alguma perda auditiva.

O exame feito em consultório para detectar quais seriam os obstáculos na interpretação cerebral leva cerca de duas horas. O maior problema, porém, é que nem toda cidade conta com ele. Para complicar, a indicação exige profissionais experientes, algo ainda mais difícil de encontrar fora dos grandes centros. A inteligência artificial entra na jogada para resolver essa limitação, o que é uma boa notícia de se ouvir.

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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