Lúcia Helena

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Reportagem

Além do cigarro: as novas formas de ser tabagista são mais perigosas

A gostosura multicolorida na foto desta coluna é um doce veneno: um pacotinho dessas gomas sortidas, com diversos sabores e cobertas de açúcar, pode conter nicotina em quantidade equivalente a quatro ou cinco vezes a de um maço inteiro de cigarros.

As balinhas são febre lá fora e, embora proibidas no nosso país, infelizmente conseguem ser compradas pela internet com relativa facilidade.

Nos Estados Unidos, entraram driblando o rígido FDA (Food and Drug Administration), graças a um golpe de mestre dos fabricantes: eles alegam que elas são livres de tabaco. E isso porque conseguiram sintetizar em laboratório o seu principal componente, que é a nicotina. Daí que a agência americana, dando-se conta do perigo, emitiu uma nota no final do ano passado alertando os pais.

"Em uma festa, um adolescente é capaz de consumir uma latinha cheia de gomas sem se dar conta", observou o pneumologista Thiago Lins Fagundes de Sousa em uma das aulas que abriram o 24º Congresso da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica, o SBOC 2023, na quinta-feira passada, dia 18, no Rio de Janeiro. O tema do painel, no caso, era a prevenção e o diagnóstico precoce do câncer de pulmão.

Segundo o Inca (Instituto Nacional de Câncer), a doença é o terceiro tipo mais frequente de tumor maligno entre os homens brasileiros e o quarto entre as mulheres. E, no evento da semana passada, os oncologistas se mostraram bastante preocupados com a constatação de que, mesmo sem ser fumante, você pode ser um tabagista contumaz — e sabe-se lá o que as novas formas de tabagismo serão capazes de aprontar no organismo! Coisa boa não será.

"Veja, alguém com o hábito de fumar em geral consome de meia a uma carteira de cigarro ao longo de um dia inteiro", compara o médico. "Se for muito dependente, tragará até dois maços diariamente. Mas, no caso, é como se a pessoa fumasse uma quantidade absurda de cigarros em uma única hora beliscando a guloseima."

Do ponto de vista do vício

Professor da Universidade Federal da Paraíba, Thiago Lins Fagundes de Sousa cresceu acompanhando o pai, pneumologista feito ele, nas visitas aos doentes. Nessas ocasiões, sempre ouvia: "Está vendo? Isso aconteceu por causa do cigarro." Aquilo ficou em sua cabeça, mas naquele tempo nem tinha tanta gente fumando em João Pessoa, onde cresceu.

Hoje, embora o consumo de cigarros tenha diminuído nas últimas duas décadas quando você olha para a população em geral, isso não está acontecendo mais — e particularmente depois da pandemia — com a faixa etária dos 13 aos 18 anos, segundo dados do governo. Um em cada quatro jovens no nosso país já fumou tabaco.

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Como se toda essa fumaça não bastasse, o tabagismo que médicos, como Thiago de Sousa, estudaram na faculdade já não é mais o mesmo, aquele do cigarro comum ou até mesmo do cigarro de palha. "Ele vem sofrendo uma transformação, com tecnologias incorporadas da indústria farmacêutica que tornam a absorção da nicotina mais rápida e mais eficiente", nota o professor.

Do ponto de vista da adição, é alarmante. "A nicotina tem o que nós chamamos de efeito dose-resposta", justifica o pneumologista. "Isso quer dizer que quanto maior a dose que eu experimento, maior será o vício."

Leia: maior será a liberação de neurotransmissores cerebrais. "Mais especificamente, você tem uma enorme descarga de dopamina nos neurônios, substância relacionada à sensação de recompensa. E eu diria que o nosso cérebro é muito preguiçoso, sempre preferindo o jeito mais fácil de executar uma tarefa", explica o médico.

De fato, se ele consegue produzir muita dopamina graças a uma substância que vem de fora — no caso, a nicotina —, passa a ficar esperando por esse empurrãozinho em vez de produzir dosagens razoáveis dela por conta própria. Então, sem o sistema dopaminérgico devidamente ativado, vem a sensação de desprazer, que só desaparece com a "ajuda" de mais e mais nicotina.

"O adulto consegue elaborar o que está acontecendo e encontrar força de vontade para tentar sair dessa situação, apesar de não ser nada fácil", diz Thiago de Sousa. "Porém, em uma criança ou em um adolescente que experimentou uma dessas balas, por exemplo, o contato com a nicotina corta uma via no sistema nervoso que ainda está em formação, a qual proporcionaria a sensação do prazer. A nicotina, afinal de contas, lhe deu um atalho. Daí que estamos criando uma geração de viciados de que, honestamente, ainda não sabemos como cuidar."

Ora, todas as pesquisas e os tratamentos para cessação do tabagismo disponíveis são baseados no cigarro tradicional. Nunca se investigou um consumo tão alto de nicotina em um período tão curto de tempo.

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Nicotina em pó

O hábito antigo de alguns povos de mascar tabaco também foi repaginado. Na Suécia, a febre são os snus, sachês com o pó da planta, que os jovens esfregam na gengiva e no interior das bochechas, quando não o deixam na boca e ficam chupando.

Proibidos na União Europeia, os snus — também chamados de pouches de nicotina — viraram febre na Escandinávia. São consumidos por 1 em cada 7 suecos, por exemplo. A ideia era de que ajudassem a diminuir o número de fumantes, o que de fato aconteceu nesse país: ele caiu de 15% para 5% da população da Suécia nas últimas duas décadas. Mas o que a comunidade científica nota é que, no mundo de hoje, você pode até não fumar e ser tabagista do mesmo jeito.

Falsa promessa

"Em geral, balinhas, snus, gomas de mascar e produtos do gênero acenam com o benefício de ajudar o indivíduo a largar o tabagismo", conta Thiago de Sousa. "Mas isso é mentiroso, porque têm uma concentração de nicotina muito mais alta do que aquela encontrada em remédios, como pastilhas com a substância, que são aprovadas e que nós, médicos, prescrevemos para tratar a abstinência nos primeiros dias após a pessoa abandonar o cigarro."

Segundo o professor, a concentração elevada de nicotina não ajuda no tratamento — ao contrário, pode ser o estopim de um novo vício em quem não fumava, mas resolveu experimentar uma "inocente" gominha, ou manter o vício antigo em quem deixou de fumar. "No fundo, a pessoa não é dependente do cigarro, mas da nicotina", lembra ele.

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Risco de doenças

Uma ideia que pode surgir é a seguinte: tudo bem que a concentração nas balinhas e nos sachês de nicotina é bem maior, mas essa substância não entra nos pulmões, como ocorre nas tragadas do cigarro convencional ou eletrônico. "Diretamente, não", reconhece o professor. "Mas a nicotina vai parar no sangue e o território pulmonar é extremamente vascularizado."

Ali, a substância provoca uma vasoconstrição, o que deve dificultar o trabalho desses órgãos. Além disso, o receio é de que, chegando pelo sangue, também acabe provocando o câncer.

A maior parte dos estudos enfocando as novas formas de tabagismo — ainda não há muitos — acusa prejuízos ao sistema cardiovascular. "Esses produtos e o cigarro eletrônico, que também pode ofertar uma quantidade maior de nicotina, aumentam os danos na parede interna dos vasos sanguíneos e aceleram a aterosclerose, as temidas placas nas artérias", conta o doutor. "Elevam, ainda, a pressão arterial."

Os rins, já é sabido, saem bastante prejudicados nessa história. "Com o passar do tempo, novos estudos podem mostrar outros danos, que talvez a gente nunca tenha associado ao cigarro convencional", diz o professor Thiago de Sousa.

De acordo com uma pesquisa publicada em junho deste ano pelo Instituto Norueguês de Saúde Pública, a nicotina correndo solta nas veias por causa do hábito de chupar snus é capaz de aumentar de duas a três vezes o risco de tumores malignos no esôfago, por exemplo.

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E o cigarro eletrônico?

"Outros trabalhos já encontraram na circulação até mesmo resquícios de metais pesados oriundos das baterias dos cigarros eletrônicos", conta o pneumologista. Vale avisar que o nosso organismo dificilmente se livra de metais pesados. Eles se acumulam pelos órgãos e — o que não é novidade — são altamente cancerígenos.

Mais um agravante: além de eventualmente conter mais nicotina do que o cigarro convencional, a versão eletrônica gera moléculas menores dessa substância, que penetram mais no tecido pulmonar e, consequentemente, são mais absorvidas pela corrente sanguínea. "Tanto que, se você dosar a nicotina no sangue, encontrará uma quantidade maior do que acharia após alguém tragar um cigarro convencional com teor equivalente dessa substância."

A absorção ligeira também faz com que a nicotina chegue velozmente ao cérebro para acionar o sistema de recompensa. "O mesmo deve acontecer com as balas e os snus, porque a mucosa oral tende a absorver substâncias com facilidade. Na Medicina, usamos remédios sublinguais quando queremos uma ação quase imediata", compara o pneumologista.

Portanto, a novidade dessas balas — e, ainda, de pós, sachês, chicletes — não é nem um pouco doce. Tem sabor de encrenca, isso sim.

Nota: a colunista viajou para cobrir o SBOC 2023 a convite da própria Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica.

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