Lúcia Helena

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Reportagem

Tratar anemia diminui o risco de alguém morrer depois de sofrer um infarto

Quando falta hemoglobina no sangue, a molécula capaz de transportar o oxigênio dentro das hemácias, que são os populares glóbulos vermelhos, o coração sofre. E, se por azar ele infarta, passa a sofrer ainda mais, aumentando à beça o risco de o indivíduo morrer por causa disso.

Não são poucos correndo esse perigo. Só aqui, no Brasil, entre 300 e 400 mil pessoas infartam todo ano. Mas os médicos, até há pouco, não sabiam direito o que fazer com essa situação, quando alguém passava pela porta do pronto-atendimento anêmico e tendo um belo ataque cardíaco. Porém, no último sábado, dia 11, parece que isso mudou.

Durante o congresso anual da AHA (American Heart Association), que terminou anteontem na Filadélfia, Estados Unidos, a apresentação de um estudo com mais de 3.500 pacientes hospitalizados entre 2017 e 2023, que estavam anêmicos e que tinham sido internados por causa de um infarto agudo do miocárdio, mostrou que, se é feita uma transfusão de sangue para elevar a quantidade de hemoglobina disponível na circulação, as chances de sobrevivência aumentam consideravelmente nos primeiros trinta dias após o perrengue — que, aviso, são bem críticos para qualquer sujeito que sofre um ataque cardíaco.

O estudo, conhecido como MINT ( de "myocardial ischemia and transfusion", que quer dizer isquemia do miocárdio e transfusão), saiu no periódico científico New England Journal of Medicine no mesmo instante em que seus resultados eram anunciados no evento, sem, digamos, estragar a boa surpresa de quem assistia à apresentação de perto. Um dos líderes do trabalho é o médico Renato Lopes, brasileiro que é professor da Divisão de Cardiologia da americana Duke University.

Aliás, além de ser um dos coordenadores globais da investigação, o instituto que esse cardiologista fundou — o BCRI (Brazilian Clinical Research Institute) — cuidou do braço brasileiro da pesquisa. Sim, ela envolveu pacientes do Brasil, além de Estados Unidos. Canadá, França, Austrália e Nova Zelândia.

O estudo já está sendo apontado pelos cardiologistas como uma espécie de divisor de águas: a expectativa é de que ele mude a forma como as pessoas infartadas serão atendidas, se por acaso a dosagem da hemoglobina estiver abaixo do adequado, que seria o mínimo de 10 gramas por decilitro de sangue. Mas também é importante entender, de uma vez por todas, que, se você tem uma anemia, ela precisa ser investigada e tratada por vários motivos. Um deles é poupar o coração de grandes apuros.

"A anemia é um marcador de risco cardiovascular, algo que deveria nos deixar em alerta", ensina o professor Renato Lopes. "Quem tem esse quadro sofre infartos mais graves, costuma ter mais complicações depois dele e morre mais também."

Quando falta energia

Da cabeça aos pés, nossas células precisam de oxigênio para obter energia. As do coração não são exceção. Ao contrário, porque elas demandam muito mais energia que outras — e o tempo todo!

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"Daí que, se eu tenho anemia, isso por si só é capaz de causar problemas cardíacos", explica o professor Renato Lopes. "E, por outro lado, diferentes doenças do coração podem se tornar mais graves se o indivíduo é anêmico."

O infarto é um bom exemplo disso. "Quando a artéria do coração fica entupida, o sangue deixa de passar por ali para irrigá-lo. Agora imagine se, além disso, o paciente está anêmico: o músculo cardíaco, que já não estava sendo oxigenado direito por causa da obstrução, não consegue ser abastecido o suficiente desse gás pelo sangue que ainda consegue chegar. Portanto, a situação se torna bem mais preocupante."

Para a gente se situar: os médicos consideram que alguém tem anemia quando a hemoglobina está inferior a 13 g/dl no sangue, embora isso possa variar um pouco conforme a etnia, o sexo e outros fatores. "Cerca de 40% dos pacientes que infartam entram no hospital com valores abaixo disso", estima o cardiologista. Uma hemoglobina abaixo de 10g/dl, por sua vez, aponta para uma anemia severa — "é, aí, estamos falando de uns 10 a 15% dos infartados." Diga-se que esse valor de 10g/dl seria, idealmente, o mínimo para o coração aguentar firme o contratempo.

A dúvida que existia antes

Segundo Renato Lopes, é de se esperar que indivíduos com anemias severas tenham outras doenças sérias, como problemas renais crônicos. "A questão que é, na evolução da Medicina, aprendemos que fazer uma transfusão de sangue em pacientes mais críticos, como os de UTI, não é algo tão simples ou inócuo", conta o professor. "Ora, em última análise, estamos transfundindo um tecido, só que um tecido líquido, com todos os riscos inerentes a isso. Podem acontecer, por exemplo, respostas do sistema imunológico levando a uma queda brusca da pressão."

Às vezes, é o oposto disso: o paciente precisa de tanta hemoglobina que, no final das contas, o total necessário de bolsas de doadores faz aumentar demais o volume de líquido em seus vasos, o que aumenta demais a pressão, algo que tampouco se quer.

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Por essas e outras, no caso dos pacientes críticos, internados em uma UTI por causa de qualquer doença, os médicos costumam tolerar uma hemoglobina lá embaixo, em torno de 7 ou 8 g/dl, pensando que seria até melhor do que transfundir sangue. "Mas será que isso também valeria no caso de um infarto, com o coração precisando tanto de oxigênio? Essa era a resposta que ninguém tinha", contextualiza Renato Lopes.

A redução de mortes

Só existiam, até então, estudos muito pequenos, que levavam a conclusões conflitantes, comparando o que os cardiologistas chamam de estratégia restritiva — que é fazer a transfusão de um pouco de sangue só quando paciente está com hemoglobina baixíssima, menor do que 8 g/dl — e uma estratégia que eles denominam como liberal, que é dar uma bolsa, duas bolsas ou o quanto for necessário até a hemoglobina alcançar 10 g/dl ou mais.

No estudo, os pacientes foram sorteados e divididos dois grupos. Um deles ficou sem transfusão, a não ser quando os níveis de hemoglobina caíam demais, ficando em torno de 7g/dl, ou quando surgiam sintomas cardíacos que os remédios já não conseguiam controlar.

O outro grupo foi tratado de cara com a estratégia liberal, recebendo sangue para manter a hemoglobina igual ou superior a 10g/dl até a alta hospitalar ou durante os trinta primeiros dias após o infarto.

No final de um mês, 16,9% dos participantes que fizeram a transfusão restritiva — aquela realizada quase que emergencialmente para a hemoglobina ficar em torno de 8 g/dl — sofreram um novo ataque cardíaco. Isso, porém, só aconteceu com 14,5% dos que receberam sangue até a hemoglobina subir para níveis normais ou próximos dos normais durante todo o período. E mais: no primeiro grupo, infelizmente, 5,5% dos pacientes morreram, contra apenas 3,2% do segundo. Isso mostra que tentar driblar pra valer a anemia durante o tratamento do infarto pode fazer muita diferença.

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Na verdade, ao longo de um ano inteiro, o risco de uma nova encrenca e de morrer do coração se mantém alto quando qualquer pessoa infarta. "Mas, lógico, essa ameaça é mais preocupante nos primeiros seis meses e, em especial, no primeiro mês", explica o professor.

E — como sabemos agora — o risco é ainda maior quando você anda anêmico. "Tanto que, se olhar para as taxas de novos eventos cardíacos depois de um infarto de maneira geral, não vai encontrar esses 14 ou 16%", chama a atenção Renato Lopes. "Esses números só foram tão altos no estudo porque todos os participantes, tratados de um jeito ou de outro, tinham anemia."

"Como se fosse febre"

O cardiologista gosta de fazer essa comparação com a anemia. "O estado febril pode ser causado por uma infecção, por uma crise de doença autoimune feito o lúpus, por alguém ter ficado muito tempo sob um sol forte", diz ele. "O médico terá de descobrir o que está por trás para tratar e não apenas dar um antitérmico. E, com o estado anêmico, é a mesma coisa."

A anemia pode ser provocada por perdas de sangue pelo intestino, por alguns tipos de de câncer, por uma menstruação exagerada, por doenças renais abalando a produção das hemácias ou, para dar mais um exemplo, pela falta de ferro no organismo. Por sinal, o mais comum é o indivíduo apresentar a tal da anemia ferropriva.

"Quando os exames acusam uma hemoglobina baixa, é obrigação de todo médico investigar qual é, de fato, a razão", pensa Renato Lopes, embora o motivo que deixou os participantes anêmicos não tenha sido levado em conta em seu estudo.

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Em alguns casos, a saída para recuperar a plena capacidade de o sangue entregar oxigênio será tomar suplementos de ferro e remédios. Em outros, será realizar uma cirurgia ginecológica. Em outros, ainda, será combater um tumor e, com isso, evitar perdas sanguíneas. Seja como for, o coração ficará mais protegido se você afastar a anemia.

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