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Blog da Lúcia Helena

REPORTAGEM

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Exagerar no sal faz o cérebro acumular sódio e isso causa hipertensão

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Imagem: iStock

Colunista de VivaBem

13/07/2023 11h50

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A pressão arterial é a força motriz que faz o sangue circular da cabeça aos pés e dos pés à cabeça, sem deixar faltar nutrientes e oxigênio a nenhuma célula de cima a baixo, ou vice-versa. Mas, nem preciso dizer, se ela sobe demais, o risco de encrenca sobe junto — um infarto ou um AVC, o acidente vascular cerebral, que ninguém quer.

Por trás de uma pressão muito alta, capaz de provocar esses perrengues, pode ser que exista um problema qualquer em um dos nossos órgãos, como uma doença renal. Mas essa hipertensão que é secundária, consequência de uma outra coisa errada com a saúde, é mais rara do que aquela considerada primária, isto é, de causa desconhecida.

Eu deveria até escrever "causas", assim no plural. Porque alavancando aquela pressão arterial que, de um ano para o outro, vai subindo aparentemente do nada, há sempre uma série de fatores andando de mãos dadas.

O genético, sem dúvida, é um deles. Ora, filhos de pais hipertensos geralmente terminam sendo hipertensos também. Mas o estilo de vida pode acelerar um bocado esse processo — a falta de exercício físico, o tabagismo, o uso de certas medicações e, temperando tudo isso, o consumo sem a menor moderação de sal de cozinha. E, aí, não só pelas razões de que a gente sempre escutou falar.

Duas pesquisas do ICB (Instituto de Ciências Biomédicas) da USP (Universidade de São Paulo), publicadas em revistas científicas de respeito, a Molecular and Cellular Neuroscience e a Experimental Physiology, mostram que uma parte das nossas pitadas de sal — a parte do sódio— vai parar no sistema nervoso central. E aí, pense, é como se a pressão subisse obedecendo a ordens superiores.

O sódio e a pressão

Sempre que falamos em sal de cozinha, ou cloreto de sódio, o que interessa mesmo para a pressão arterial é essa segunda porção do nome — o sódio, mineral que compõe 40% do condimento, sendo que os os outros 60% são o tal cloreto.

E o sódio faz coisas incríveis por todo o nosso organismo, regulando o funcionamento das mais diversas células. Está longe de ser um bandido. Mas sua ingestão em excesso pode levar à hipertensão — claro, há pessoas que são mais e há pessoas que são menos sensíveis a esse consumo.

"Uma das razões de o sódio provocar a elevação da pressão é que, onde ele vai, a água vai atrás", costuma brincar Vagner Roberto Antunes, professor de fisiologia do ICB da USP. Sim, o mineral atrai o líquido que fica entre as células para dentro dos vasos sanguíneos e, com isso, o volume de sangue aumenta.

Só que a tubulação por onde ele corre, modo de dizer, continua a mesma. Logo, o volume extra precisa forçar a passagem, pressionando a parede das artérias.

Outra razão de o uso de sal além da conta desencadear a hipertensão, porém, é bem menos conhecida: o sódio acaba se acumulando no cérebro, afetando alguns núcleos envolvidos no sistema nervoso autônomo, aquele que, sem pedir a autorização da nossa vontade, controla dos batimentos cardíacos aos movimentos dos pulmões e da digestão, passando pela contração e pelo relaxamento dos vasos sanguíneos.

"Na verdade, não existe função orgânica que não seja modulada por ele", diz o professor Antunes, que investiga desde os tempos de sua formação como o sistema nervoso controla a nossa circulação sanguínea. E, há quase 16 anos, ele tenta compreender de que modo o sal que ingerimos no dia a dia influencia nessa história.

Água salgada

O cientista, no caso, usa um modelo animal — o rato albino — para entender exatamente o que acontece com a gente depois de usar sem economia o saleiro. Em seu estudo, ele simplesmente substituiu a água com a qual o bichinho mataria a sede por uma solução com 2% de sódio.

"Se ele fica bebendo essa água salgada durante sete dias, lá pelo segundo ou terceiro, já começa a desenvolver uma hipertensão", conta. Claro que esses goles deixam o sangue ligeiramente mais salgado, turbinando a sua capacidade de puxar líquido dos tecidos. Mas não fica só nisso.

"Nosso organismo é cheio de sensores", lembra o professor. "E no cérebro, especificamente na região do hipotálamo, há aqueles que notam a presença de sódio extra na circulação." Isso acontece porque o plasma sanguíneo, carregado desse mineral, está em contato direto com o líquor. Daí que esse líquido, o qual banha o cérebro e a medula espinhal, acaba retendo sódio também e levando a informação.

O hipotálamo, por sua vez, é um QG do sistema nervoso autônomo. "Uma vez que esses sensores são ativados, há uma descarga aumentada que, resumindo, leva ao aumento da pressão arterial", conta o professor. "E nós resolvemos investigar os neurotransmissores que participariam dessa resposta."

Há vários. Mas os cientistas da USP ficaram mais de olho em uma substância de que, na certa, você já ouviu falar: o ATP. Sabe aquela molécula considerada a fonte de energia de todas as nossas células? Pois bem, desde a década de 1960, ela foi reconhecida como um neurotransmissor também.

"Nós fomos os pioneiros em estudar o ATP como o neurotransmissor por trás da hipertensão neurogênica, aquela causada pelo sistema nervoso central, induzida por sal", revela Vagner Antunes. "Quando, por meio de uma cânula finíssima, a gente injetava a própria molécula de ATP no hipotálamo do animal, em uma área conhecida como núcleo paraventricular, a atividade do sistema nervoso autônomo ficava hiperativada, contraindo os vasos e, consequentemente, aumentando a pressão."

De lá para cá, os cientistas já confirmaram que, de fato, o ATP é o principal neurotransmissor que, após o consumo de sal, faz a pressão subir. E um aspecto interessante: as células glia, que no passado foram consideradas responsáveis apenas pelo suporte do cérebro, mostraram que podem liberar, elas próprias, neurotransmissores. E eram a grande fonte de ATP quando os animais ingeriam mais sal no laboratório. O mesmo deve acontecer com gente como a gente.

Porém, o questionamento nos meios acadêmicos era: os pesquisadores só estavam oferecendo água salgada para as cobaias, sem dar ao organismo deles a mínima chance de se livrar do excesso de sódio, como aconteceria se nós, depois de nos fartarmos em um churrasco com muito sal grosso, tomássemos bastante água para compensar. É disso que trata um outro trabalho do ICB-USP.

Depois do churrasco

"Há dez anos, estou nesse barco de sal e hipertensão", se apresenta a nutricionista Paula Magalhães Gomes, pós-doutoranda do ICB-USP, que sempre se dedicou à pesquisa.

Ela ainda estava na Universidade Federal de Ouro Preto, em Minas Gerais, quando estudava cobaias bem novinhas —"como se fossem bebês humanos de 6 meses que estivessem saindo do aleitamento materno", compara — e incluía sal na ração. Só que os animais tinham acesso à água normal. Mesmo assim, depois de 90 dias, com idade equivalente àquela de um jovem adulto, eles tinham se tornado hipertensos.

No ICB-USP desde 2019, Paula começou a trabalhar para responder a pergunta que ela e seus colegas tanto ouviam: será que a pressão não subiria por falta de água de beber purinha? Primeiro, provou que a bebida salina não chegava a aumentar o volume de sangue nos vasos. E que, apesar de beberem só água com sal, não havia um aumento de sódio significativo no plasma sanguíneo. "Por serem animais saudáveis, que tinham rins funcionando bem para eliminar o sódio a mais, no final esse mineral não ficava circulando em excesso", explica.

O que havia, isso sim, eram picos de pressão arterial — como, de volta ao exemplo do churrasco, deve acontecer depois de você devorar a picanha com sal. Com muito líquido junto, o sódio vai embora e a pressão se normaliza depressa.

Mas aí é que está: o cérebro não aceita um sobe-e-desce de pressão."Por isso, mesmo sem sódio elevado no sangue, os animais permaneciam por um bom tempo com o mineral aumentado no líquor", explica.

O problema de exagerar desde a infância

Os pesquisadores também observam que, uma vez desafiado com uma sobrecarga de sal, mesmo que possa se livrar do sódio adiante, se houver um bis —isto é, se o cérebro ficar banhado de novo em sódio em outro momento — pode ser que a pressão suba mais ainda na segunda vez. Porque ele já teria mudado a programação de suas células para um outro padrão. E, a cada fase de exagero no saleiro, a tendência à hipertensão neurogênica vai crescendo.

A lição que fica na cabeça é que as pitadas sal, portanto, devem ser maneiradas ao longo de toda a vida. Infelizmente, até pelo consumo desde a infância de alimentos ultraprocessados ricos em sódio, o brasileiro ingere mais do que o dobro dos 5 gramas desse mineral recomendados pela OMS (Organização Mundial da Saúde). E, para tristeza do coração, essa memória o cérebro não perde.