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Blog da Lúcia Helena

REPORTAGEM

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Entenda o jeito de trocar a válvula do coração que acaba de chegar ao SUS

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Imagem: iStock

Colunista de VivaBem

24/11/2022 04h00

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O procedimento foi realizado pela primeira vez no mundo em 2002 e agora, vinte anos depois, aqui no Brasil ele acaba de ser incorporado pelo SUS (Sistema Único de Saúde). Os médicos o chamam de TAVI, como se fosse um apelido sem cerimônia. Na realidade, TAVI é a sigla em inglês para "transcatheter aortic valve implantation". Ou implante transcateter de válvula aórtica, em português.

Bem, só não diria "em bom português" porque o termo continua soando a grego para a maioria de nós, alheios ao fato de que cinco em cada 100 pessoas acima de 75 anos têm estenose aórtica, um estreitamento dessa que é a principal das quatro válvulas existentes no coração, a qual, ao se abrir feito uma porta de saída, permite que o sangue com oxigênio flua por todos os vasos do corpo.

"Ela fica estreitada por causa de um processo degenerativo comum com o avançar da idade", explica o médico Alexandre Abizaid, diretor do Serviço de Hemodinâmica e Cardiologia Intervencionista do InCor (Instituto do Coração), em São Paulo.

Quando a passagem é estreita

Dessa gente com estenose aórtica, metade tem sintomas. Entre eles, uma terrível dor no peito. "O indivíduo não necessariamente carrega uma obstrução nas artérias do coração, que são as coronárias", esclarece Abizaid. "Elas é que talvez não estejam recebendo sangue direito."

Afinal, como a válvula está estreitada, acaba indo menos sangue oxigenado, inclusive para esses vasos que irrigam o próprio músculo cardíaco. E ele sempre se ressente dolorosamente quando a circulação não dá suporte para toda a sua trabalheira.

Também é muito comum essas pessoas terem síncope, isto é, desmaiarem do nada. Novamente, isso acontece porque a válvula, em vez se escancarar, faz o sangue passar por uma fresta. Daí que ele talvez deixe de abastecer o cérebro como deveria e vem o apagão.

Chega a um ponto que, de tanto lutar para expulsar o sangue, o coração se esgota. Surgem o cansaço e a falta de ar, resultantes da insuficiência cardíaca.

"A gente sabe que, quando há qualquer um desses desses três sintomas, a sobrevida do paciente é de 50% em dois anos. Quer dizer, quase metade morre nesse período", diz Abizaid.

Os exames que revelam o problema

Quando a estenose é grave, é preciso fazer alguma coisa, mesmo que o indivíduo pertença àquela metade que não sente absolutamente nada porque seu organismo parece se adaptar ao sufoco. Os cardiologistas sabem que não dá para confiar na ausência de mal-estar.

Estenose aórtica é sempre um sinal de alerta e tanto, especialmente quando o simples ecocardiograma mostra que a válvula está com um tamanho igual ou menor do que 1 centímetro quadrado. "O músculo cardíaco, então, já começa a ficar enfraquecido, o que é preocupante", nota Abizaid.

Se o ecocardiograma acusa essa gravidade, os cardiologistas costumam complementá-lo solicitando uma angiotomografia. Trata-se de uma espécie de tomografia com contraste, capaz de exibir os vasos, das pernas até o pescoço. "Com isso, o médico vê se existem artérias boas para o trajeto do cateter do TAVI, se for o caso de realizá-lo, e planeja o tamanho exato da válvula que usará para corrigir o problema."

Como é o tratamento

Durante décadas, o tratamento preferencial para pessoas com essa estenose era cirúrgico: os cirurgiões abriam o peito, tiravam a válvula doente e colocavam uma outra em seu lugar, só que artificial. Não vamos reclamar porque, sem dúvida, foi uma saída muito bem-sucedida.

"Só não devemos nos esquecer que essa é uma doença que acontece predominantemente no idoso", diz Abizaid. "E quem tem 75, 80 anos geralmente já possui uma série de comorbidades, o que faz o risco de morrer em uma cirurgia dessas ser quase proibitivo."

De fato, muitos pacientes terminam sendo recusados para a cirurgia — por causa de uma doença renal avançada, de uma insuficiência hepática ou, ainda, do que os médicos chamam de aorta em porcelana, que é quando essa artéria está inteira calcificada, tão endurecida que o cirurgião nem consegue pinçá-la para trocar a válvula problemática.

É para esses casos que o TAVI se tornou a melhor alternativa. Por meio de uma pequena punção, geralmente na artéria femoral na altura de virilha, o médico passa o catéter com uma nova válvula, que tem como arcabouço algo que lembra um stent, uma rede metálica feito mola. É o que você vê, por exemplo, na imagem que ilustra este texto.

"Dentro desse stent , por sua vez, são suturadas pequenas folhas de pericárdio suíno ou bovino", descreve Abizaid. O pericárdio é a membrana que, feito um saco, envolve o coração.

Quando o dispositivo chega ao local exato da válvula doente, ele se expande e, imediatamente, essas lâminas de pericárdio começam a funcionar como uma válvula pra valer. A antiga nem sequer precisa ser retirada. É deixada de escanteio, empurrada pela rede metálica contra a parede, para ficar ali, quietinha, sem atrapalhar mais em nada.

Do preparo do paciente até o seu encaminhamento à UTI, onde costuma ficar nas primeiras 24 horas, tudo não demora mais do que 90 minutos. Três dias depois, a pessoa já pode voltar para casa e, em uma semana, retoma suas atividades habituais.

Para quem é o procedimento

Nessas duas décadas de existência, o TAVI foi se aprimorando e os dispositivos se tornaram ainda menores, percorrendo com mais folga as artérias até alcançarem coração. E, se no início esse tratamento só era indicado para aqueles indivíduos que não podiam ser operados de jeito algum, desde 2019 também vem sendo recomendado para quem tem baixo risco cirúrgico.

"Isso porque diversos estudos provaram que, mesmo nesses casos, há uma diminuição da necessidade de internar a pessoa outra vez. Também há menos AVCs (acidentes vasculares cerebrais) e mortes", conta Abizaid.

Talvez você se pergunte: por que, então, esse procedimento minimamente invasivo não substitui logo de uma vez a cirurgia convencional para a troca da válvula? Primeiro, por uma questão de custo. A tecnologia continua cara, sem contar que não há profissionais capacitados para realizá-la em qualquer hospital. Por isso, a nova portaria do Ministério da Saúde só está liberando o TAVI no SUS para quem tem acima de 75 anos e alto risco cirúrgico.

Já na rede privada, ele às vezes é cogitado antes dessa faixa etária. "Existe uma zona cinzenta, entre os 65 e os 75 anos, em que o indivíduo pode ter várias comorbidades apesar de ser mais jovem", observa Abizaid. "Aí, a equipe que cuida do paciente deve se reunir para avaliar a possível indicação do TAVI."

TAVI versus cirurgia tradicional

É claro que, se todo mundo que tivesse um problema de válvula aórtica pudesse escolher, optaria por um procedimento minimamente invasivo como esse, sem ganhar um corte no tórax, grampos metálicos no osso esterno e toda a chateação que costuma acompanhar as grandes cirurgias. Mas não é bem assim: nem tanto à operação tradicional, nem tanto ao TAVI. Por enquanto, cada uma tem o seu lugar.

"Até o momento, o TAVI só é indicado para um paciente mais jovem se, por algum motivo, ele for correr um alto risco ao partir para uma cirurgia", afirma Abizaid.

Por quê? "Ora, você há de convir que, mesmo com estudos apontando suas vantagens, o TAVI acabou de sair da adolescência com seus 20 anos, enquanto a cirurgia convencional de substituição valvar já soma meio século", responde o doutor. "Só temos um número considerável de pacientes tratados com TAVI de uma década para cá. Então, a questão em aberto é a durabilidade dessas próteses."

A média de duração de uma válvula que você coloca em uma cirurgia é de dez a quinze anos. Passado esse tempo, a pessoa precisa ser operada de novo para trocá-la. E com o TAVI? Incógnita. Como os estudos envolvendo muitos pacientes só têm uns dez anos, ninguém sabe se o TAVI será igual, pior ou melhor nesse quesito.

Mas, para alguém já idoso que tinha grande probabilidade de morrer por causa da tal estenose aórtica, já se nota um benefício e tanto: uma existência mais longa e com muito mais qualidade. Aliás, algo que o SUS acaba de reconhecer com a incorporação do TAVI. Na semana que vem, aguarda-se, haverá o anúncio de quais hospitais públicos do país estão qualificados para realizar o procedimento.