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Blog da Lúcia Helena

REPORTAGEM

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Chocolate: as desculpas das neurociências para você devorar o ovo de Páscoa

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Imagem: iStock

Colunista de VivaBem

16/04/2022 04h00

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Não sei você, mas eu posso, com maior ou menor esforço, resistir a uma taça de vinho, a um picolé de frutas, ao pudim de leite da minha mãe, à pizza de sábado, à pipoca do cinema, sem contar outras tantas delícias da vida que, acho, ainda não estão em cardápios.

No entanto, fica muito difícil ser forte diante da visão e do cheiro do chocolate. Aí, me derreto. A perspectiva da Páscoa, então, faz a lembrança das mesas de final de ano parecer refeitório de spa.

Aliás, há boa chance de você ser um dos meus: de acordo com dados revisados pelo Laboratório de Neurofisiologia da Gustação na Universidade de Yale, nos Estados Unidos, apenas entre 7% e 10% das pessoas em qualquer ponto do mapa-múndi são indiferentes ao chocolate, podendo comer ou não comer um bombom que tanto fez, tanto faz. Ou até torcem o nariz e fecham a boca.

O resto da humanidade, porém, cai no outro extremo, como eu: não é que apenas gosta e, sim, que adora, ama e venera o produto do cacau. A maioria daqueles que consomem chocolate elege o seu sabor como um dos três favoritos na vida, se é que não ocupa o primeiríssimo lugar.

O mistério da preferência

As explicações para o fenômeno da chocomania são as mais diversas. Passam pela formação dos sensores do paladar, com a velha alegação de que preferimos o que é doce desde o útero, uma vez o que o líquido amniótico no ventre, que o feto engole vez ou outra, é adocicado por natureza e o leite materno, idem.

Já estudiosos da área da psicologia mencionam a associação inevitável do chocolate com os sabores da infância, aumentando pilhas de teses sobre confort food, a comida que conforta.

Só que até aí, doce por doce, ninguém trocaria chocolate por rapadura. E, conforto por conforto, aposto que, entre um tablete ao leite e um prato de canja, as pessoas salivarão mais com a primeira opção.

Embora o foco não tenha sido o chocolate, vale lembrar de um trabalho em camundongos, realizado ainda em 2016 por pesquisadores da Universidade de São Paulo, da Universidade Federal do ABC e, mais uma vez, de Yale, nos Estados Unidos.

Explicando de um jeito resumido, em artigo publicado na revista Nature Neuroscience, os cientistas das três instituições confirmaram que determinados circuitos neuronais ligados à sensação de recompensa são ativados sempre que comemos algo açucarado.

Mas outros circuitos, digamos que mais potentes, localizados em outras regiões cerebrais, ficam tomados de dopamina, o neurotransmissor do prazer, sempre que você ingere algo altamente calórico, seja ele doce ou não. Seria uma forma de o sistema nervoso fazer com que a gente prefira aquilo que dá energia, tentando garantir a sobrevivência como se permanecesse em um passado pré-histórico de escassez de comida.

E, sendo a assim, o combo somando boa quantidade de gorduras e açúcares do chocolate ativaria mais áreas cerebrais de recompensa do que algo puramente doce feito o mel ou gorduroso como a batata frita. Mas, apesar de curiosa, nem essa hipótese mata a charada por trás dessa paixão global.

O fato é que, mais do que entender o gosto pelo chocolate, as investigações no campo das neurociências querem esclarecer a ação positiva de barras, bombons ou até mesmo de uma xícara de bebida à base de cacau sobre a nossa cognição.

Se você buscar no PubMed, a fabulosa biblioteca de Medicina do governo americano, encontrará mais de 150 trabalhos sobre essa relação realizados só nos últimos cinco anos.

Portanto, no lugar de usar como argumento para se lambuzar neste domingo as especulações de que o chocolate é irresistível para o cérebro, diga que há bons indícios de que o seu consumo regular ajudaria a proteger os neurônios de danos ao longo do tempo, diminuindo o risco de Parkinson, Alzheimer e outras demências. E olha que não estará mentindo em plena Páscoa!

Aliás, até mesmo o consumo pontual, aquela mordiscada de vez em quando, oferece vantagens em momentos puxados. Duas horas depois da ingestão e os componentes do chocolate já incrementariam nossa memória executiva — a qual relembra como devemos fazer as tarefas do dia a dia — , além de nossa capacidade de atenção e de tomada de decisão.

O cacau na cabeça

"Por trás dessas observações estão substâncias bioativas conhecidas por polifenóis, com destaque para as moléculas de flavonoides e, especialmente para as de metilxantinas, compostos que atravessam a barreira hematoencefálica que protege o cérebro e que, uma vez dentro dele, produzem um estado de prontidão", conta a professora Elizabeth Torres.

Engenheira agrônoma de formação, graças ao pós-doutorado em ciência dos alimentos ela foi convidada a dar aulas nessa área na Faculdade de Saúde Pública da USP (Universidade de São Paulo), onde está há 31 anos. Boa parte desse período também foi dedicada a fazer pesquisas sobre três ingredientes que são estimulantes do sistema nervoso central e tremendamente antioxidantes — o guaraná, o café e, claro, o chocolate.

As tais metilxantinas citadas pela professora são a família da popular cafeína do cafezinho, da teína do chá e da teobromina do cacau. Mas o que se sabe é que, apesar do parentesco com a cafeína, a molécula endeusada do cacau age de maneira um pouco diferente. O componente do café é um estimulante mais forte, que espanta a fadiga mais rápido.

Em compensação, a teobromina mantém seu estímulo por mais tempo, sem disparar o mesmo estado ansioso que surge quando alguém exagera um pouco no cafezinho. É um ponto positivo. Afinal, a ansiedade leva a gente a botar os pés pelas mãos na hora de agir. Enquanto o chocolate tende a deixar a mente mais desperta, mas sem bagunçar o foco.

"Ainda assim, por ser um estimulante, o ideal seria evitá-lo à noite", diz Elizabeth, apesar não seguir a própria recomendação. Confessa que costuma comer um chocolate como sobremesa do jantar. Como a maioria de nós, simplesmente não resiste.

Resultados no cérebro

Em uma revisão feita por pesquisadores do Instituto de Ciência, Tecnologia de Alimentos e Nutrição, na Espanha, divulgada na revista Nutrients, foram cruzados dados de 11 trabalhos sobre cacau e cognição, envolvendo 366 adultos com idade média de 25 anos. "A conclusão foi de que o consumo regular de chocolate elevaria a produção de proteínas que neutralizariam danos nos neurônios capazes de, com o tempo, levar a um risco maior de doenças neurogenerativas, como diversos tipos de demência", conta Elizabeth Torres.

No mesmo ano, enquanto esvaziávamos caixas de bombons para aliviar a cabeça que só pensava na pandemia, cientistas da Universidade de Birmingham, no Reino Unido, publicaram uma experiência curiosa na Scientic Reports. Foram 18 participantes jovens e saudáveis.

Os pesquisadores observaram a circulação sanguínea no cérebro dos voluntários enquanto eles respiravam um ar com 5% de gás carbônico, proporção bem maior do que o normal. Isso costuma funcionar como uma provocação: a tendência é o sistema nervoso aumentar o seu fluxo de sangue para compensar a diminuição do oxigênio.

Em seguida, os 18 jovens tomaram uma bebida feita com um chocolate com alta concentração de polifenóis. Isso então fez a circulação aumentar especialmente na região do córtex frontal, atrás da testa, que tem tudo a ver com planejar ações, prever riscos e tomar decisões. Os participantes também fizeram testes de memória e raciocínio. Depois da xícara de chocolate, o aumento no desempenho foi de 11%.

Como consumir para fazer efeito?

Segundo Elizabeth Torres, os resultados na capacidade cognitiva surgem quando o indivíduo consome de 500 a 750 miligramas de polifenóis do cacau por dia. "Isso equivaleria, mais ou menos, a um tablete pequenino de apenas uns 25 gramas", estima.

Claro, o chocolate amargo vai concentrar muito mais polifenóis do que a versão ao leite. Mas só o que não vale nessa história é o chocolate branco, que em matéria de flavoinoides e teobromina é uma nulidade. "Assim como não adianta tomar achocolatado. Bebidas achocolatadas têm apenas 10% de chocolate pra valer, quando muito", avisa Elizabeth Torres. Logo, procure preparar a sua xícara com um legítimo cacau em pó.

Segundo a professora, os bioativos do cacau duram cerca de quatro horas no organismo. Desse modo, quem quer se preparar para uma prova, por exemplo, deveria saborear um pedaço de chocolate no máximo esse tempo antes. Na verdade, o pico da ação no sistema nervoso é notado após duas horas.

A rigor, o melhor seria comer o chocolate puro, sem recheios mirabolantes. Ou a desculpa da ciência da cognição vira esfarrapada, certo? "Ah, mas acho encantadora a ideia de saborear um ovo de Páscoa bem recheado. Comida não é remédio", rebate, risonha, a especialista da USP. Tudo bem, então vamos nessa. Use a cabeça e feliz Páscoa!