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Elânia Francisca

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Criança não namora, nem de brincadeira? Reflexões sobre educação emocional

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

16/04/2021 04h00

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É mais um dia de aula, Fernanda tem oito anos e caminha nos corredores da escola. Erick, da mesma idade, percebe a dificuldade da menina em carregar a mochila e outros materiais que levava nos braços. O garoto se aproxima, pergunta se Fernanda precisa de ajuda e os dois dividem o peso que ela carregava. De longe, alguns adultos, trabalhadores da escola, observam a cena com sorrisos esboçados no canto da boca. Um funcionário se aproxima das crianças, dá dois tapinhas no ombro de Erick e diz: "Esse Erick é ligeiro, já está de olho na menininha". A outra educadora acrescenta: "Pra você ver, o menino é mais cavalheiro que muito marmanjo por aí".

Na cena relatada acima, a única coisa fictícia é o nome das crianças, todo o resto aconteceu de verdade, no pátio de uma escola em que eu estava trabalhando.

A cena, que poderia ter sido lida como um ato de solidariedade entre duas crianças, transformou-se num depósito de um imaginário de erotização dos adultos sobre os corpos de duas crianças de oito anos.

Estou chamando de erotização esse ato de pensar e verbalizar que um menino, quando ajuda uma menina a carregar seus materiais, está de alguma forma investindo desejo nela e, consequentemente, seu ato de ajudá-la a carregar um peso passa a ser visto como flerte ou cavalheirismo.

Já parou para pensar sobre o que acontece no imaginário adulto, que faz com que precisemos transformar em paquera, namoro e desejo sexual toda interação entre meninas e meninos?

O que faz uma pessoa adulta pensar que uma criança de oito anos só ajudaria outra porque estava atraída sexualmente por ela? Quando dizemos que criança não namora, não estamos sendo moralistas ou vendo malicia em tudo. Na verdade, estamos propondo uma reflexão sobre infância e o desenvolvimento sexual saudável e ampliando as ações de educação emocional. Sim, porque educação emocional também é para aprendermos a identificar e nomear o que estamos sentindo.

Então quando um menino vê uma menina carregando uma mochila pesada e livros no antebraço, ele sente algo que o impulsiona a ajudá-la, mas o nome desse sentimento não é atração/interesse, nem cavalheirismo. Chama-se senso de coletividade ou empatia, que se desdobra em um ato de solidariedade.

Precisamos ampliar nosso repertório para cuidar das crianças, pois se continuarmos erotizando as interações na infância, seguiremos contribuindo para a manutenção de um ciclo de erotização das amizades e, pior, incentivaremos as crianças a pensarem da mesma forma, a ponto de não saberem diferenciar empatia de desejo sexual e chamarem de cavalheirismo qualquer ato de solidariedade entre os gêneros.

Ao invés de nos perguntarmos por que não podemos dizer que as crianças estão namorando, deveríamos nos perguntar:

  • Por que nós, adultos, fazemos e incentivamos esse tipo de coisa?
  • Por que é importante para nós, adultos, chamarmos toda interação entre crianças de gêneros opostos de namoro?
  • O que estamos ensinando às crianças, quando dizemos que os meninos só vão ajudar as meninas se estiverem interessados em namorar com elas?

E a pergunta principal: O que esse tipo de brincadeira diz sobre nós mesmos?