Absorventes para menstruação são testados sem sangue --e isso é um problema

Absorventes para conter o sangue menstrual —usados todos os meses, durante anos, pelas mulheres— são testados sem sangue. E, por isso, esses produtos teriam capacidade menor de absorção do que o "prometido" na embalagem.

A conclusão é de um estudo publicado no mês passado por cientistas da Universidade de Saúde e Ciência de Oregon (EUA). A pesquisa também aponta que soluções salinas são usadas predominantemente para testar produtos menstruais.

Os resultados, publicados no periódico BMJ Sexual & Reproductive Health, lançam luz para possíveis problemas decorrentes disso: se o parâmetro usado para avaliar o produto não é parecido com a vida real, fica difícil entender se uma pessoa tem ou não fluxo intenso.

As pesquisadoras avaliaram a real capacidade de absorção de diferentes produtos menstruais populares nos Estados Unidos —parte deles é vendida também no Brasil— por meio de testes com sangue. Segundo as autoras, "não existe nenhum estudo que compara a capacidade de produtos de higiene menstrual atualmente disponíveis usando sangue".

Descobrimos que a rotulagem da capacidade do produto estava em desacordo com nossos resultados --a maioria dos produtos relatou que tinha maior capacidade do que os nossos testes encontraram. Suspeitamos que isso se deva a testes de produtos com líquidos sem sangue, como água ou solução salina. [...] Soluções salinas são frequentemente usadas para testar os produtos.
Autoras do estudo

Por que é assim?

O uso de água salina nos testes de absorventes é resultado de uma padronização definida em 1980, pela FDA, a agência reguladora dos Estados Unidos, equivalente à Anvisa no Brasil.

Na época, foi criada uma força-tarefa depois que uma marca de absorvente interno descobriu que o produto aumentava o risco da síndrome do choque tóxico, condição rara causada pela proliferação de bactérias após uso prolongado do produto.

A FDA determinou, então, que as empresas criassem produtos com variedade maior de absorção para reduzir os riscos da síndrome. Com isso, o uso de soluções salinas ou água foi mantido como padrão nos testes. Até hoje, empresas mantêm essa forma de avaliação.

Continua após a publicidade

Na época, até fazia sentido usar a solução salina, já que o objetivo era apenas ajudar os consumidores a saber, em geral, o nível de absorção de que necessitam e certificar-se de que estão usando a absorção mínima necessária para reduzir o risco da síndrome do choque tóxico.
Bethany Samuelson Bannow, autora do estudo em entrevista à rede de televisão dos EUA Oregon Public Broadcasting

Qual o problema de não testar com sangue?

A consistência do sangue e da água ou solução salina é diferente, explica a ginecologista Andrea Nácul, da Comissão de Ginecologia Endócrina da Febrasgo (Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia). E isso tem impacto na capacidade de absorção.

O sangue não é homogêneo. A consistência pode variar de acordo com o nível de hidratação de uma pessoa, por exemplo. O sangue menstrual é ainda mais variável porque também contém secreções vaginais e tecido que foi eliminado da parede uterina.

O sangue é totalmente diferente de uma solução salina e, se a pessoa tiver coágulos durante a menstruação, por exemplo, há uma dificuldade na absorção que pode causar o vazamento do sangue.
Andrea Nácul, ginecologista

Foram analisados 21 produtos, desde absorventes, coletores, calcinhas absorventes e discos na pesquisa. As cientistas usaram sangue de bolsas que iriam para o descarte —o que também não é igual ao sangue menstrual, segundo elas, mas é mais "fiel" do que solução salina.

Continua após a publicidade

O estudo é importante porque, às vezes, a pessoa acha que está consumindo um produto que oferece maior capacidade de absorção, mas, na verdade, não.
Andrea Nácul, ginecologista

Pesquisadoras usaram sangue para medir real capacidade de absorção dos produtos menstruais
Pesquisadoras usaram sangue para medir real capacidade de absorção dos produtos menstruais Imagem: Freepik

Por que não testam com sangue?

O sangue é considerado "um bem precioso", segundo um artigo da revista Scientific American sobre a falta de estudos com a substância. A frequente escassez de sangue nos hospitais norte-americanos torna difícil justificar a utilização de doações para qualquer outra finalidade que não seja transfusões.

O "potencial risco biológico" do fluido é outro ponto levantado pelo artigo. Quem manuseia o sangue precisa passar por um treinamento específico —não há a mesma necessidade ao trabalhar com solução salina.

O preço do sangue —e do sangue artificial— é considerado caro. Um frasco de 10 ml do fluido com qualidade para uso em pesquisa custa cerca de 100 dólares (cerca de R$ 500) nos Estados Unidos. Já 200 ml de sangue sintético de alta qualidade pode custar mais de 150 dólares. Por outro lado, os laboratórios podem comprar um litro cheio de solução salina por 45 dólares —quase metade do preço, segundo a Scientific American.

Continua após a publicidade

Para os especialistas, porém, isso não pode ser uma desculpa. O novo estudo mostra que há necessidade de uma revisão nos padrões de testes.

O ditado 'o sangue é mais espesso que a água' é tecnicamente verdadeiro. Realmente, sentimos que [a métrica de absorção] devia ser atualizada.
Bethany Samuelson Bannow, autora principal do estudo em entrevista à Scientific American

Quem verifica a informação?

Não existe um padrão industrial para testes de capacidade, exceto para absorventes internos, segundo relataram as pesquisadoras, com base na realidade regulatória dos Estados Unidos.

E a capacidade relatada é baseada em solução salina ou água, nenhuma das quais se parece com o sangue menstrual. Pesquisadoras, em comunicado da BMJ

No Brasil, a Anvisa explica que não há requisito obrigatório expresso em norma que exija a apresentação de testes de eficácia da absorção dos produtos.

Continua após a publicidade

A empresa titular deve possuir dados comprobatórios que atestem a qualidade, a segurança e a eficácia de seus produtos. Ainda, deve garantir que o produto não constitui risco à saúde quando utilizado durante o seu período de validade e em conformidade com as instruções de uso.
Anvisa, em comunicado

Copinho e OB: capacidade de absorção varia entre os produtos
Copinho e OB: capacidade de absorção varia entre os produtos Imagem: iStock

Por que saber importa?

Ter mais compreensão sobre a capacidade dos produtos menstruais pode ajudar os médicos a quantificar melhor a perda de sangue menstrual, oferecer testes de diagnóstico e tratar o sangramento uterino prolongado, conhecido também como menorragia, segundo as autoras do estudo.

Algumas pessoas podem achar que "sangram" demais devido a critérios envolvendo a quantidade de absorventes que usam durante o ciclo, o que pode não ser tão preciso assim. Esse critério foi usado por muito tempo, mas, recentemente, entidades decidiram modificar as classificações para o sangramento uterino prolongado, conhecido também como menorragia.

Esse método de contar o número de absorventes usados durante o dia, conhecido como teste pictorial, para saber se a pessoa tem fluxo intenso, é errático e não usamos mais. Tem gente que suja um pouco e já troca o absorvente. Tem gente que demora mais. Além disso, há uma diversidade de produtos.
Andrea Nácul, ginecologista

Continua após a publicidade

Hoje, leva-se em conta outros fatores, como o impacto na qualidade de vida do paciente, se há muitos coágulos no sangue, se há vazamento do absorvente. "Também pedimos hemograma para saber se a pessoa tem anemia, além do próprio exame físico. O sangramento uterino prolongado é um sintoma de várias doenças, como mioma e até câncer ginecológico."

O ciclo menstrual pode levar à perda de 70 ml a 80 ml de fluido. Acima dos 80 ml, os médicos consideram sangramento uterino prolongado.

Saber a real capacidade de absorção dos produtos também pode ajudar no bem-estar. E evitar vazamentos e desconfortos.

Consistência do sangue interfere na absorção; presença de coágulos também causa mais vazamentos
Consistência do sangue interfere na absorção; presença de coágulos também causa mais vazamentos Imagem: Monika Kozub/Unsplash

Pouca pesquisa

As pesquisas sobre sangue menstrual ainda são escassas. Um artigo vinculado ao estudo da BMJ mostra que apenas um estudo sobre sangue menstrual foi publicado entre 1941 e 1950. Nas últimas décadas, o número subiu para 400. Parece bastante, mas estudos sobre disfunção erétil, um problema comum entre os homens, são muito mais comuns: há cerca de 10 mil trabalhos publicados no mesmo período sobre a condição masculina, de acordo com o artigo.

Continua após a publicidade

Há a necessidade de dados mais concretos, segundo os autores, pois há uma série de custos financeiros associados à menstruação, que vão desde a compra de produtos de higiene menstrual e analgésicos até o afastamento do trabalho e da escola. A pesquisa lembra que 800 milhões de pessoas em todo o mundo menstruam.

Uma compreensão completa da complexa dinâmica do ciclo menstrual normal, juntamente com o uso adequado de produtos menstruais adequados, constitui a base essencial para melhorar a qualidade de vida e proporcionar melhores cuidados para as pessoas.
Autoras do estudo

Deixe seu comentário

Só para assinantes