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Assassinato de Daniella Perez seria punido hoje como feminicídio e stalking

Antônio Batalha/Folhapress
Imagem: Antônio Batalha/Folhapress

De Universa, em São Paulo

22/07/2022 17h03

Feminicídio e stalking eram palavras que não faziam parte do debate público nem da legislação brasileira quando a atriz Daniella Perez foi assassinada pelo então ator Guilherme de Pádua e sua esposa Paula Thomaz. O caso ocorrido em 1992 voltou a despertar interesse no país com a estreia da série documental "Pacto Brutal", que estreou nesta quinta-feira (21) na HBO Max.

Três décadas após o assassinato de Daniella, filha da diretora e escritora Glória Perez, o país tem uma série de avanços legislativos na área de combate à violência contra a mulher —que faria com que o crime que chocou o país na época fosse punido de forma mais severa, mas, principalmente, posicionaria o caso no espectro da violência de gênero.

Em novembro de 1992, a atriz de 22 anos foi morta com 28 punhaladas e sem direito nem tempo para se defender. O corpo dela foi encontrado num local descampado no Rio de Janeiro. Ela estava no auge da carreira e contracenava com Pádua na novela "De Corpo e Alma", da TV Globo, folhetim escrito por Gloria.

O crime causou comoção e impulsionou a lei que caracterizou o homicídio premeditado como crime hediondo em 1994. A partir dali, condenados por homicídio qualificado poderiam ter a pena aumentada, além de não estarem mais sujeitos a progressão penal.

Mas naquela época o massivo debate público sobre mudanças na legislação se restringia a isso, já que a Lei Maria da Penha, um dos marcos da legislação de gênero, por exemplo, só foi criada 14 anos depois, em 2006.

A advogada criminalista Bruna Borges, professora de Direito Penal, afirma que o caso da atriz, hoje, possivelmente se enquadraria em tipos penais criados mais recentemente —como o crime de feminicídio, criado em 2015, e o de stalking, no ano passado.

"O feminicídio é um homicídio qualificado que decorre de duas possibilidades: de violência doméstica; ou homicídio que decorre de misoginia ou do menosprezo pela mulher como resultado de uma discriminação de gênero, que se encaixaria mais no caso da Daniella", explica.

"Algumas testemunhas e atores também aparecem na série relatado a perseguição de Guilherme Pádua: ele ligava muito para ela, deixava mensagens na caixa postal, o que já estaria prejudicando o casamento dela; também há relatos de que ele a procurava o dia inteiro. Desde o ano passado, essa perseguição reiterada está prevista na lei como crime de stalking —termo que vem do inglês, da ideia de predador, de uma perseguição contínua", diz Bruna.

"Ou seja, nos termos de legislação e jurisprudência, houve um avanço no debate porque desde então leis que protegem a mulher, como a Maria da Penha, foram introduzidas na legislação penal; o entendimento de legítima defesa da honra, que até pouco tempo atrás era usado e foi considerado pelo STF, mas a gente ainda tem o que avançar bastante, sobretudo sobre responsabilização da vítima."

Culpabilização da vítima

O documentário aborda como a imagem de Daniella atrelada à sua personagem na novela —par romântico do personagem de Pádua na trama— colaborou para gerar questionamentos se, de fato, a vítima não estaria envolvida com o ator (o que não era verdade). A obra, diz Bruna, é importante para a reflexão sobre a culpabilização da vítima.

"As pessoas buscaram condutas pretéritas para justificar de alguma forma o crime que ela mesma sofreu, que tirou a vida dela. Houve uma confusão muito grande entre ficção e realidade —e os meios de comunicação têm responsabilidade nisso quando, por exemplo, as manchetes mostravam cenas e imagens da novela nas notícias sobre o assassinato, alimentando esse imaginário popular. Houve culpabilização muito grande da vítima e isso infelizmente ainda existe. Neste ponto, ainda não avançamos", diz a advogada.

A advogada Flávia Ribeiro, presidente da seccional da OAB Mulher do Rio de Janeiro, concorda com o argumento de Bruna.

"Infelizmente, ainda não avançamos. Tivemos muitos casos recentes independentemente do tipo de violência que a mulher sofra, ela sempre é culpabilizada ainda hoje, como a atriz Klara Castanho, que entregou o filho de forma legal e foi criticada; a criança de 11 anos que sofreu estupro e também foi julgada por querer fazer aborto legal; Mariana Ferrer, abusada sexualmente pelo agressor que teve também seu relato colocado em dúvida", lista Flávia.

Para ela, na época o caso de Daniella não foi debatido como crime de gênero por causa de resquícios de machismo e misoginia.

"A mulher, na nossa sociedade, sempre foi colocada nesse lugar de sub-humanidade. Se este crime tivesse ocorrido nos dias de hoje, teríamos uma repercussão grande e essas novas leis fariam com que o agressor tivesse uma pena mais alta. O que mudaria é que ele teria uma pena muito mais severa, com qualificação de homicídio e stalking", sintetiza.