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'Desamparada': elas tiveram que entrar na Justiça para pedir aborto legal

Ativista a favor do aborto em protesto na Avenida Paulista, em São Paulo, em 2018 - NurPhoto/NurPhoto via Getty Images
Ativista a favor do aborto em protesto na Avenida Paulista, em São Paulo, em 2018 Imagem: NurPhoto/NurPhoto via Getty Images

De Universa, em São Paulo

08/07/2022 04h00

No Brasil, três situações garantem a mulheres o aborto legal: o Código Penal autoriza o procedimento em gestação decorrente de estupro e quando há risco à vida da gestante; o STF (Superior Tribunal Federal) adicionou, em 2012, a possibilidade para feto com anencefalia —a regra pode se estender a outros casos de malformação, como já autorizado pela Justiça brasileiro. Mas, mesmo sendo um direito garantido, mulheres que se enquadram nestes casos têm entrado na Justiça para garantir o acesso ao serviço. Muitas, inclusive, têm os pedidos negados.

Universa conversou com três mulheres que iniciaram uma saga judicial para tentar realizar um procedimento ao qual, em tese, elas já têm direito.

Todas falaram à reportagem em condição de anonimato, cada uma por seus motivos: medo de estigmatização, não ter contado a situação que viveu para amigos e familiares ou medo de retaliações em seus trabalhos. Seus nomes, então, foram alterados ao longo do texto.

Grávida em um estupro, ela teve aborto negado e terá que deixar emprego

A cuidadora de idosos Larissa*, 29, ficou grávida em um estupro. Moradora de Ribeirão Preto, não conseguiu realizar o aborto porque procurou o serviço do hospital após 22 semanas de gestação, e teve o pedido negado. Muitos serviços de saúde negam o procedimento a mulheres alegando não o realizam se a gestação estiver entre 20 a 22 semanas, como aconteceu com a menina de 11 anos, vítima de estupro, em Santa Catarina. Mas essa é uma recomendação técnica do Ministério da Saúde, de 2012, e não é prevista em lei, que não fala em prazo gestacional.

Desesperada com a situação, Larissa procurou um hospital de referência em aborto legal, desta vez em Uberlândia, em Minas Gerais. Mas a instituição também negou o atendimento à mulher. Ela, então, procurou a Justiça e recebeu mais uma negativa.

Hoje, ela está na 34ª semana, reta final da gestação. Decidiu que vai entregar o bebê para adoção legal. Mas não ter realizado o procedimento é uma dor que ainda ecoa em sua vida. Por causa da gravidez e dos procedimentos com o parto, vai ter que parar de trabalhar. Sem registro, diz que não sabe de onde vai tirar o dinheiro para cobrir quase um mês sem salário.

"Vou ter que deixar o emprego por pelo menos 20 dias. E o que vou fazer da minha vida depois? Tenho filhos para criar e sem ninguém mais para recorrer, não tenho como pegar nenhum auxílio ou seguro-desemprego, estou desemparada", diz. "É muito frustrante lutar por algo que você tem direito e sabe disso, perceber o problema que vai surgir no futuro e não ter como correr disso."


Mesmo com risco de morrer, ela precisou recorrer à Justiça 3 vezes

Em Campinas, interior de São Paulo, a vendedora Joice* obteve uma decisão da Justiça a seu favor quando pediu autorização para abortar. Aos 44 anos e com três filhos, ela entrou com uma ação pelo fato de a gestação apresentar risco à sua vida. Ela tinha pré-eclampsia e diagnóstico de hipertensão arterial específica da gravidez.

"Depois da minha última gestação, minha médica tinha me falado que, se engravidasse novamente, correria sério risco de vida. Quando me vi grávida, foi desesperador. A primeira coisa que me veio à cabeça foi: 'Vou morrer'".

"Contei só para meu marido, não falei nada meu trabalho e decidi fazer o aborto. Ao abrir o processo, apresentei laudos da médica que me acompanhou nas gestações anteriores, onde ela redigiu problemas de saúde e classificou meu quadro como de alto risco", conta. O pedido à Justiça foi feito em junho deste ano.

A decisão, inesperadamente, chegou rapidamente: em duas semanas, quando ela estava na 11ª semana de gestação, o juiz José Henrique Rodrigues Torres, da Vara do Júri da comarca de Campinas, autorizou o procedimento.

"É evidente que o problema do aborto pode e deve ser enfrentado fora do sistema penal, de modo mais eficaz e não danoso, sem que as mulheres tenham que suportar os riscos do aborto inseguro", escreveu o magistrado na decisão.

O juiz ainda salientou que os profissionais da saúde que realizassem o procedimento não poderiam ser investigados, perseguidos ou punidos no âmbito criminal nem no administrativo.

Mas Joice esbarrou na burocracia. "Procurei um hospital e, mesmo com o laudo de risco, falaram que não tinham como fazer o aborto porque não tinham me avaliado, e só poderiam fazer se eu estivesse em acompanhamento com eles", lembra.

"Me pediram para retornar ao hospital na semana seguinte. Mediram pressão, conversaram e afirmaram que eu deveria iniciar um pré-natal. Mas, nisso, o tempo estava passando".

Joice retornou à Justiça, que enviou um ofício dizendo que o aborto deveria ser feito em 24 horas. O hospital não acatou a decisão porque a carta não estava endereçada à instituição. Foi enviado mais um ofício, dessa vez citando nominalmente o hospital —e só assim Joice conseguiu fazer o aborto, realizado no dia 12 de junho deste ano.

"O médico disse que eles não poderiam aceitar meu laudo de primeira por não conhecer o trabalho e a índole da outra médica. Agora, talvez, com esse contexto, eles saibam como lidar com isso daqui para a frente."

Feto com anomalia e gestante em risco, mas aborto teve que ser feito na Colômbia

A fisioterapeuta Rosa* descobriu uma gravidez aos 40 anos. Ao realizar o pré-natal em Belo Horizonte, onde mora, teve mais uma notícia: o feto foi diagnosticado com a Síndrome de Patau, como é conhecida a trissomia 13, uma doença rara causada pela existência de um cromossomo 13 a mais, o que provoca diversas complicações que dificultam a vida fora do útero.

"Tinha uma porcentagem mínima de sobrevivência do bebê. Ele poderia viver uma semana ou morrer no parto. Isso gera uma angústia muito grande. A gente não quis levar adiante a gravidez, mas não é todo mundo que compreende que existe um sofrimento para a mãe nesses casos."

Rosa, que também tinha uma gestação de alto risco por causa de pré-eclâmpsia e pela idade, conta que procurou a Justiça para conseguir autorização para abortar com essa justificativa.

Para o processo, teve que fazer diversos exames e reunir laudos. "Não aguentava mais fazer ultrassom, mas tive que fazer para comprovar a condição e tentar um aborto", lembra. O Ministério Público estadual deu um parecer favorável ao caso da fisioterapeuta, mas a juíza Soraya Hassan Baz Láuar, da 1ª Vara Cível da Comarca de Belo Horizonte, indeferiu o pedido no dia 21 de fevereiro deste ano.

Na decisão, a magistrada não usa argumentos jurídicos nem legais, mas morais. "A relação materna entre filho e mãe se inicia com a concepção, pois, por mais que a vida do feto seja incerta ou de curta duração, o amor maternal já se manifestou, amor esse que ultrapassa a linha do imaginário e do inatingível", diz, no texto, a magistrada.

A decisão foi um choque para Rosa. "Ela foi muito radical e não deu nenhuma explicação técnica, apenas não concordou com o procedimento. Na decisão, ela menciona o amor ao filho, uma coisa muito arcaica, que não gosto nem de lembrar", afirma.

Ela e o marido decidiram não recorrer à decisão para não perder tempo e começaram a levantar outras alternativas. Com a ajuda da organização Milhas Pela Vida das Mulheres, que auxilia mulheres a interromperem a gestação de maneira legal, o casal viajou até Bogotá, capital da Colômbia, onde poderiam fazer o procedimento até a 18ª semana de gestação em uma clínica particular.

"Fiquei impressionada com o respeito que eles têm pelas pacientes e pelo profissionalismo. Mas, ao mesmo tempo, fiquei triste de ter que sair do meu país para fazer o procedimento."

Hospitais não podem pedir autorização judicial em casos previstos em lei

Ativista a favor do aborto em protesto na Avenida Paulista, em São Paulo, em 2018 - NurPhoto/NurPhoto via Getty Images - NurPhoto/NurPhoto via Getty Images
Ativista a favor do aborto em protesto na Avenida Paulista, em São Paulo, em 2018
Imagem: NurPhoto/NurPhoto via Getty Images

A advogada Renata Teixeira Jardim, coordenadora da área da violência da ONG Themis - Gênero, Justiça e Direitos Humanos, explica que, para casos dentro das três hipóteses em que o aborto é autorizado no Brasil, não há necessidade de autorização judicial para a realização do procedimento.

"Se não há previsão de ilegalidade ou de criminalização da prática nessas três situações, não há também necessidade de o Judiciário intervir no procedimento", afirma.

Em casos de violência sexual, existem normativas específicas, que são documentos orientadores sobre os procedimentos de interrupção de gravidez nessas situações. "No caso de estupro, não é necessário boletim de ocorrência, por exemplo"

Nos casos de risco à gestante, a defensora pública Nálida Coelho, coordenadora do Nudem (Núcleo Especializado de Defesa dos Direitos das Mulheres) da Defensoria Pública de São Paulo, também reforça que não há necessidade de que o Judiciário se debruce sobre a existência do risco, "mas sim um laudo". "Não precisa ser comprovado um risco imediato, mas qualquer problema grave, que pode ser diante de uma situação que há algum tipo de risco atestado e a gravidez deve ser interrompida

A decisão do STF que autorizou aborto para casos de anencefalia também abre brechas, diz a defensora, para "Essa orientação do STF pode ser utilizada para outras doenças em que há incompatibilidade de vida extrauterina. São casos semelhantes a anencefalia que não justifica tratamento diferenciado. O direito protege bens jurídicos que são passíveis de proteção, como a vida. Nessa hipótese, não há bem a ser protegido, não existe um crime passível de concretização."

O que fazer se você tiver o direito legal ao aborto negado?

Caso um hospital se negue a realizar o atendimento, Nálida diz que é possível buscar saídas extrajudiciais. "A mulher pode procurar órgãos que fiscalizam a conduta dos profissionais ou ouvidorias dos próprios hospitais. Mas, infelizmente existe, barreiras institucionais, e o aborto é um procedimento dificultado. Por isso, ela pode procurar a defensoria pública ou qualquer advogada para que tenha essa proteção garantida em lei", orienta.

"Essa busca pelo Judiciário já nos sugere que não há efetividade de um direito, que a oferta do serviço está equivocada e não está sendo eficaz."

Para ela, o aumento de mulheres que precisam judicializar seus casos nas hipóteses de aborto legal indicam problemas relacionados a criminalização da conduta, ausência de formação dos profissionais de saúde e desinformação sobre o tema.

Por sua vez, a advogada Renata Jardim afirma que a criação de uma insegurança jurídica tem sido utilizada como estratégia do campo que é contrário ao aborto. "Objetivo é a suspensão geral desse direito", diz. "Quando o hospital nega o aborto, poucas vão para o Judiciário. A maioria volta para casa porque não quer passar por mais uma violência, dessa vez no Judiciário."

*os nomes foram alterados a pedido das entrevistadas