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Qual o prazo para a realização de um aborto legal? Entenda o que diz a lei

Manifestação em favor do aborto em São Paulo - Foto: Marlene Bergamo/Folhapress
Manifestação em favor do aborto em São Paulo Imagem: Foto: Marlene Bergamo/Folhapress

De Universa, em São Paulo

22/06/2022 11h44

O caso da criança de 11 anos, vítima de estupro e grávida, que teve um pedido de aborto legal negado em Santa Catarina não é exceção no Brasil. Há relatos frequentes de mulheres com o mesmo pedido negado por hospitais e pela Justiça. Ainda que se enquadrem nos termos previstos pelo Código Penal, que autoriza o procedimento em caso de estupro e risco à vida da mulher— recebem negativas por causa do tempo gestacional. Mas o que diz a lei em relação a isso?

À menina catarinense, o aborto legal foi negado sob alegação de ter ultrapassado o prazo gestacional que define um aborto: entre 20 a 22 semanas de gestação (a gestação da garota havia passado disso) ou quando o feto tem até 500g. Mas essa é uma recomendação técnica do Ministério da Saúde, de 2012, e não é prevista em lei.

Ou seja, não é ilegal interromper uma gravidez, mesmo após as 22 semanas, se o caso em questão estiver previsto nas normas brasileiras, que além de estupro e risco à gestante ainda elenca anencefalia do feto, por decisão do STF (Supremo Tribunal Federal).

Mas há uma questão conceitual que divide a classe médica, como explica a ginecologista e obstetra Carolina Pereira.

"Se uma mulher grávida chega ao hospital com sangramento e perde o bebê, será considerado aborto espontâneo se for até 22 semanas ou 500g de peso fetal. A partir disso, será considerado óbito fetal", diz.

Por isso, há um grupo que defende que, após esse período, o aborto seria um "feticídio". Outro grupo, baseado na legislação, afirma que nos casos de interrupção de gravidez legal, a indução ao óbito se chama assistolia fetal, processo em que se induz à parada dos batimentos cardíacos, e o procedimento também é considerado aborto.

Para OMS, não há prazo para interromper gravidez

Em março deste ano, a OMS (Organização Mundial de Saúde) publicou novas diretrizes em que atualiza as recomendações para protocolos de abortamento. O órgão diz, no documento, que não há limites gestacionais para a prática, e os que são sugeridos pelos países, como no Brasil, são baseados em evidências científicas. "Embora os métodos de aborto possam variar de acordo com a idade gestacional, a gravidez pode ser interrompida com segurança, independentemente da idade gestacional", afirma o texto.

"É um assunto de muita discussão entre as equipes que fazem abortamento em lei. Alguns hospitais definem o limite de 22 e, em outros, 20. Há até mesmo alguns que fazem com até 24 semanas. O procedimento não se faz sozinho. São equipes que dependem de médicos e enfermeiros, então os hospitais definem essas regras", diz a ginecologista Carolina Pereira.

"Se for seguida a nota técnica do Ministério da Saúde, o hospital segue a indicação de interrupção da gravidez até a 22ª semana. Mas existem profissionais de saúde e médicos se baseiam no Código Penal, e aí podem realizar o procedimento independentemente da idade gestacional", explica a médica. A decisão, portanto, é com base em interpretação pessoal, e o hospital pode ser negar a fazer o procedimento após a 20ª semana alegando seguir a recomendação do Ministério da Saúde.

A nota técnica do órgão define ainda que o peso fetal também pode ser utilizado como critério para a realização do aborto, em vez das semanas de gestação.

"Mas como normalmente o peso fetal, medido por meio de ecografia, não é um indicador com uma margem muito segura, alguns hospitais preferem não utilizar esse critério. Quanto mais cedo se faz o exame, menor o erro."

ONGs tentam judicializar aborto após 22ª semana

Para tentar conseguir o acesso ao serviço público de aborto legal em casos que ultrapassaram 20 semanas de gestação, grupos de mulheres têm levado essas questões à Justiça. A organização Milhas pela Vida das Mulheres, que ajuda brasileiras a acessarem seus direitos, é uma que faz esse amparo jurídico.

A advogada Thais Pinhata, do corpo jurídico da entidade, explica que o coletivo trabalha com essa lacuna na lei, que não estipula prazo. Ela lembra que as autorizações em diversos países têm sido revistas e que não existe um padrão para estabelecer um limite de permissão ao abortamento legal.

"Nos países próximos ao Brasil e que descriminalizaram o aborto recentemente já existe uma grande variação. A Colômbia, o último a legalizar, adotou o prazo de 24 semanas. E existem países na Europa que não têm nenhuma delimitação", diz.

Também parte da organização, a advogada Beatriz Magrani explica que, ainda que a lei brasileira não cite um prazo para aborto, elas entram com ação processual para dar garantia e respaldo ao pedido de procedimento, se prevenindo contra possíveis percalços criados pelo Judiciário —o que nem sempre dá certo.

"A autorização vai depender dos entendimentos dos tribunais. Nos nossos processos no estado de Minas Gerais, por exemplo, ainda que a gente envie processos cautelosos e bem documentados, eles não autorizam. Já no estado de São Paulo, existe maior aderência e sensibilidade ao tema", avalia.

Limite é impedimento para mulheres acessarem serviço

Um estudo publicado em 2021 na publicação Latin American Journal of Development e realizado no Hospital Pérola Byington, unidade de referência ao serviço de aborto legal em São Paulo, mostrou que a procura tardia do serviço de aborto e o prazo de 22 semanas era um dos principais motivos para que mulheres vítimas de abuso sexual não prosseguissem com o procedimento. A pesquisa, publicada no ano passado, foi realizada com 2.418 gestantes entre 1994 e 2017.

A psicóloga Daniela Pedroso, especializada no tema de violência sexual e aborto, explica que esta incidência de mulheres vítimas de estupro que não prosseguem o aborto por este motivo é maior na faixa dos 12 a 18 anos. "Em relação a meninas, crianças e adolescentes, é a falta de conhecimento do próprio corpo para entender o que está acontecendo. Isso o que faz com que elas busquem o serviço de saúde tardiamente, o que vai resultar em uma possível não realização do procedimento de aborto", diz a psicóloga.

Para a médica Carolina Pereira, há, ainda, o problema do tabu da violência sexual, "Na maioria das vezes, as pessoas não querem admitir que houve um abuso. Temos uma cegueira coletiva para esse tema. Para uma adolescente é difícil contar, e para família e pessoas ao redor, também é difícil de admitir. Muitas crianças passaram por abusos sucessivos e menstruam pela primeira vez, sem acompanhamento ginecológico. Elas não são capazes de dizer o que está acontecendo. Quando a família descobre, a gravidez já está avançada", afirma.

Daniela ainda chama a atenção para a saúde mental da menina de Santa Catarina que aguarda a autorização do aborto. "Entrou-se numa discussão jurídica, mas essas pessoas não estão pensando na saúde mental dessa criança grávida de um estupro. O que sei, na prática, atendendo esses casos há 25 anos, é que estar grávida de estupro é um sofrimento."