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Morta aos 27, há 50 anos, Leila Diniz faria estremecer até o Brasil de hoje

Atriz que virou ícone: imagens de Leila seminua e de biquíni grávida e entrevistas em que soltava vários palavrões sempre viravam polêmica - David Drew Zingg/Acervo Folhapress
Atriz que virou ícone: imagens de Leila seminua e de biquíni grávida e entrevistas em que soltava vários palavrões sempre viravam polêmica Imagem: David Drew Zingg/Acervo Folhapress

Camila Brandalise e Rute Pina

De Universa, em São Paulo

14/06/2022 04h00

Cinquenta anos depois da morte da atriz Leila Diniz, vítima de um acidente de avião ao voltar da Austrália em 14 de junho de 1972, já não causa mais comoção ver uma mulher grávida de biquíni na praia. Um ano antes da tragédia, ela causou: se deixou fotografar com a peça, mostrando o barrigão em que levava a filha Janaína. A foto estampou jornais e revistas e escandalizou a sociedade, que exigia que o top tivesse um tecido mais largo, caindo pela barriga e cobrindo-a. Essa imagem de Leila, a mais famosa, traz um pouco do que eram seus arroubos revolucionários. Um pouco, repetimos. Mesmo porque falas e posicionamentos dela de 50 anos atrás fariam franzir testas e levantar sobrancelhas dos mais conservadores até hoje —vide a repercussão das falas de Anitta sobre sua sexualidade livre.

Três frases de Leila foram capazes de incomodar o governo militar da época. Em 1969, após uma entrevista dela a "O Pasquim", a ditadura estabeleceu a censura prévia para qualquer tipo de publicação para "proteger os bons costumes" —a nova norma foi apelidada de Decreto Leila Diniz. Autoridades do governo deveriam ler tudo que fosse a público antes de chegar aos cidadãos, para não correr o risco de os brasileiros lerem frases como as ditas por Leila, que foram as seguintes:

"Não acredito nessa coisa do amor possessivo e acho chato. Você pode amar uma pessoa e ir para a cama com outra. Isso já aconteceu comigo." E tinha mais.

Sexo e palavrões quase a levaram presa

Uma sequência de palavrões recheavam a entrevista a "O Pasquim", todos substituídos por asterisco. Era com eles que Leila explicava sua visão sobre amor, sexo, prazer, desejo, casamento e fidelidade. E foram eles que lhe custaram uma quase prisão.

"Porra, um cafuné na cabeça, malandro, eu quero até do macaco" — Leila Diniz em entrevista a "O Pasquim", em 1969.

O que ela falava e como agia era um ataque frontal ao discurso falsamente moralista da ditadura militar e dos cidadãos que a apoiavam. Aquele era um aviso: ou cessavam seus ultrajes libidinosos à moral e aos bons costumes ou sua vida livre acabaria ali. Também era acusada de ajudar militantes de esquerda, o que nunca foi provado.

Leila Diniz em foto de 1969 - Carlos Leonan/Acervo Folhapress - Carlos Leonan/Acervo Folhapress
Leila Diniz em foto de 1969
Imagem: Carlos Leonan/Acervo Folhapress

Até que a poeira baixasse, passou uma temporada escondida no sítio do jornalista e apresentador Flávio Cavalcanti em Petrópolis (RJ). Depois, a ordem de prisão foi revogada, mas ela teve que assinar um termo de responsabilidade dizendo que não falaria mais palavrões, negando sua personalidade.

Depois disso, apesar do sucesso, muitas portas se fecharam por ela ser quem era. "Leila foi sacrificada, ficou sem trabalho, sem contratos. A ditadura veio com aquela fúria, as portas das televisão se fecharam, ela ficou sem dar entrevistas. Foi muito censurada", relembra a atriz e cineasta Ana Maria Magalhães, amiga de Leila que conta a história dela no documentário "Já que Ninguém Me Tira para Dançar", lançado em janeiro deste ano.

Apesar da tentativa de apagamento, seu nome ficou marcado por bater de frente contra a moral machista da época. "Ela teve um desempenho muito importante para mostrar a hipocrisia brasileira. Mas sem levantar bandeiras, apenas fazendo o que ela sentia, pensava e queria. Isso foi uma ofensa para a ditadura e para a sociedade, formada por pessoas que fingiam ser avançadas, mas não eram", afirma Ana Maria.

Feminismo a criticava, e direita a chamava de "vagabunda"

Sexualidade e desejo femininos são temas que, hoje, estão sob o guarda-chuva do feminismo. Na época de Leila, porém, as feministas a criticavam por "fazer o jogo dos homens" ao falar de sexo abertamente, segundo o jornalista Joaquim Ferreira dos Santos no livro "Perfis Brasileiros: Leila Diniz" (ed. Companhia das Letras). Ela própria não se considerava feminista.

Leila estrelou a primeira novela produzida pela Globo, Ilusões Perdidas - Reprodução/Cedoc/TV Globo - Reprodução/Cedoc/TV Globo
Leila e Reginaldo Faria na primeira novela produzida pela Globo, Ilusões Perdidas
Imagem: Reprodução/Cedoc/TV Globo

A esquerda a via como alienada por tratar de assuntos que não tinham tanto valor quanto pautas políticas, e era chamada de "vagabunda" pela direita e pelos conservadores. Onde já se viu uma senhora falar o que ela falava em uma época em que mulheres —brancas e de classe média e alta, vale ressaltar— deveriam ficar em casa cuidando da família e servindo ao marido.

A carreira de Leila foi de sucesso, e ela tinha o público. Havia sido protagonista da primeira novela produzida pela Globo, "Ilusões Perdidas", em 1965, e estrelou outros 11 folhetins depois desse. Também apareceu em 14 filmes entre os anos 1967 e 1972. Até morrer em um acidente que comoveu o país.

Para Ana Maria, 50 anos após a morte da amiga, sua figura não tem o reconhecimento que merece. "Somos um país que não se valoriza e que tem um problema de memória, além de um falso moralismo, vigente até hoje, que colabora para que o legado de pessoas como ela não sobreviva. Por isso fiz o documentário", explica.

"Ao mesmo tempo, vejo muito a Leila em mulheres como Anitta e Deborah Secco. Aliás, queria muito que a Anitta visse o filme, acho que ela iria se identificar bastante. Ela quer mudar essa conduta para mulheres brasileiras. No fim, nós queremos ter liberdade, ser feliz e estar à vontade,"


Após meio século, Leila continua entre nós

A morte de Leila foi sentida em todo o país, dado seu sucesso na TV, no cinema e com seu movimento, ainda que individual, de liberação feminina. Se na época ela foi abandonada pelas feministas, hoje, suas atitudes seriam automaticamente associadas ao feminismo e a uma maneira de ser mulher que extrapola cartilhas do que é certo e errado.

"Vivemos um momento importante de lembrar a Leila porque o Brasil passou por muita coisa, evoluiu muito mas, de repente, parece que tudo regrediu. Depois da ditadura veio a reabertura política. Mas agora veio esse refluxo do conservadorismo, um moralismo imenso."

Correr atrás da própria liberdade, fazer o que quiser com o próprio corpo, falar de sexo sem pudor. Ainda hoje são atitudes relacionadas à mulher moderna. Mas é coisa que Leila já fazia há 50 anos. "Neste momento que se discute muito o feminismo, a figura dela tem muito a dizer. Por isso é importante a Leila não ficar esquecida. Com certeza, ela ainda é uma mulher muito moderna. Ou nós é que somos atrasados", diz a cineasta.