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"Sobrevivi a uma tentativa de feminicídio e estou reaprendendo a caminhar"

14 anos após ter sofrido uma tentativa de feminicídio, Karina está voltando a andar - Acervo pessoal
14 anos após ter sofrido uma tentativa de feminicídio, Karina está voltando a andar Imagem: Acervo pessoal

Karina Ferrary em depoimento a Ana Bardella

De Universa

05/05/2021 04h00

"Contar minha história é sempre difícil: sobrevivi a uma tentativa de feminicídio e algumas partes dela são tão pesadas que sinto como se estivesse falando de outra pessoa. Ainda é complicado assimilar o que aconteceu comigo, mas se eu pudesse resumir o que aprendi nos últimos 14 anos, diria que me sinto grata todos os dias por ainda estar viva.

Aos 15 anos, morava com a família e conheci um rapaz da mesma idade na vizinhança. Nos envolvemos e, em menos de dois meses, fomos morar juntos. Os parentes dele tinham acabado de comprar uma casa pequena bastante próxima de onde eu vivia, então fomos para lá, morar sozinhos.

Levava uma vida de dona de casa: cuidava dos afazeres domésticos e de preparar a comida. Tivemos uma rotina tranquila por algum tempo, mas logo as coisas começaram a mudar. Aos poucos, ele começou a sentir ciúmes de tudo o que eu fazia, inclusive de quando conversava com a minha mãe ou irmã. Isso foi me irritando cada vez mais, até que decidi teríamos uma conversa decisiva.

"Até aquele momento, nunca tinha sofrido uma violência física"

No final da tarde, quando ele chegou em casa, coloquei as cartas na mesa, dizendo que ou ele mudava de atitude ou terminaríamos. Depois, voltei para a cozinha a fim de terminar o jantar. Nisso, ele trancou os portões de casa bem cedo, algo que só costumávamos fazer antes de dormir. Eu estranhei, mas como o clima estava ruim, achei melhor não tocar no assunto.

Alguns minutos depois, ele foi até mim extremamente nervoso, com as pernas tremendo. Disse que não iria mudar o comportamento e que nós não iríamos nos separar.

Eu me assustei, porque até aquele momento considerava o meu marido uma pessoa calma, que não costumava gritar, não usava drogas e que nunca tinha me batido. Mas, a verdade é que ali começou meu pesadelo. Quando me dei conta, ele estava com uma faca grande nas mãos, tentando me atacar. Assustada, só tive tempo de me defender e consegui jogar o objeto para longe.

Nesse momento, entendi que era uma situação premeditada: ele imediatamente puxou outra faca, um pouco menor, do bolso — e conseguiu me acertar pela primeira vez, no queixo. Desmaiei e, quando acordei, estava no seu colo. Ele começou a falar comigo, mas eu estava em um estado de choque tão grande que não conseguia responder. Irritado, ele me virou e me deu mais sete golpes entre a nuca e o pescoço.

"Passei 14 horas em um poço e todos pensaram que eu estava morta"

Naquele momento, ele pensou que tinha atingido seu objetivo de acabar com a minha vida, mas, para se certificar disso, usou um travesseiro para me asfixiar. Como no fundo da nossa casa tinha um poço bastante fundo, me arrastou pelo braço pelo quintal e me jogou lá. No momento em que caí, meu corpo girou e fiquei de cabeça para baixo. Com medo de que ele pudesse tacar alguma pedra ou fazer qualquer outra coisa para me machucar ainda mais, me policiei para ficar em silêncio.

Foi a pior de todas as experiências pelas quais eu já passei. Eu desmaiava e acordava, perdia muito sangue, sentia muita dor. O poço estava cheio de insetos e fiquei lá, na mesma posição, até que o dia amanheceu.

Cheguei a gritar pela minha mãe quando vi a luz do sol, mas seria impossível alguém me ouvir.

Por volta das 10h da manhã, veio a polícia. Descobri mais tarde que ele mesmo contou sobre os crimes que tinha cometido para minha sogra, e ela fez a ligação.

Eu enxergava as luzes das lanternas chegando até o fundo do poço, mas não conseguia mais falar — então pensaram que estava morta. Chegaram até mesmo a dar a notícia para a minha mãe.

Incapazes de retirar meu corpo, os policiais entraram em contato com o IML, que estava cuidando de outro homicídio. Eles deram a orientação de que começassem a quebrar o poço, tomando cuidado para manter meu rosto o mais preservado possível, que em breve chegariam para completar o processo.

No momento em que as pessoas presentes na cena começaram o trabalho, perdi todas as esperanças. As pedras da destruição caíam nas minhas pernas, nos meus braços e eu já estava completamente fragilizada. Achei que perderia o fio de vida que tinha me restado.

Quando terminaram a quebra, conseguiram virar meu corpo e passei quase meia hora ali, esperando a chegada do IML. Foi então que uma pequena pedra caiu na minha mão e eu gritei. Nisso, o funcionário que restava presente saiu gritando que eu estava viva — e finalmente comecei a receber os primeiros socorros.

"Disseram para minha família que eu nunca mais iria andar"

Acordei dez dias depois, na UTI. Ninguém pensou que eu pudesse sobreviver, mas consegui. Antes de me darem alta no hospital, no entanto, um dos médicos alertou minha família: as lesões tinham atingido um ponto muito importante da coluna vertebral e o mais provável era que eu nunca mais voltasse a andar.

O primeiro ano foi o mais difícil. Passei meses de cama, usando sonda, fralda, dependendo de ajuda e voltando todo o tempo para o hospital.

Por causa dos traumas psicológicos, desenvolvi muito medo de escuro e também de facas. Se alguém esquecia disso e vinha cortando uma fruta perto de mim, por exemplo, eu desmaiava imediatamente.

Só consegui superar isso depois de muitas sessões de terapia.

Depois desse tempo, comecei a fazer fisioterapia. Reconhecia o milagre que era ter permanecido viva, o esforço das pessoas ao meu redor e me agarrava a isso para fazer os exercícios com muita vontade, mesmo sendo tão difícil. Logo consegui sentar e mexer os braços. Minha evolução surpreendeu a todos. Meu ex-marido ficou preso por apenas 45 dias, porque era menor de idade e foi condenado a me pagar uma indenização mensal de R$ 150 até o fim da vida, que minha família recusou.

"Hoje estou mais perto do que nunca de voltar a andar"

Três anos depois de tudo acontecer, conheci um rapaz, engravidei sem planejamento e me casei. Nesse período, parei com a fisioterapia, porque a maternidade demandava muito de mim. Ainda assim, continuava fazendo todo esforço possível para conseguir cuidar do meu filho, o que me ajudou a recuperar alguns movimentos.

Karina ao lado do filho, de 10 anos, e da esposa Patrícia - Acervo pessoal - Acervo pessoal
Karina ao lado do filho, de 10 anos, e da esposa Patrícia
Imagem: Acervo pessoal

A relação também não deu certo e nos separamos depois de quatro anos. Então, conheci minha atual esposa, com quem sou casada há sete anos. Ela foi quem mais ajudou na minha recuperação: me incentivou a voltar para a fisioterapia e viajou comigo para a Bahia, a fim de que meu tratamento fosse coordenado por profissionais de lá.

Quando chegamos ao centro de tratamento especializado, em 2019, os médicos mal acreditavam que meu laudo estava correto: pela profundidade das lesões, era quase impossível que estivesse tão recuperada.

Ainda assim, passei dois meses sendo reabilitada, engordei alguns quilos e recebi um programa de exercícios para ser seguido quando voltasse para casa. Hoje, aos 30 anos e seguindo à risca esse planejamento, já consigo dar alguns passos com o andador e estou mais próxima do que nunca de voltar a andar.

Nunca perdi as esperanças porque sei, pela minha história de vida, que nada é impossível." Karina Ferrary, 30 anos, de Foz do Iguaçu (PR)

Como denunciar violência contra a mulher

Mulheres que passaram ou estejam passando por situação de violência, seja física, psicológica ou sexual, podem ligar para o número 180, a Central de Atendimento à Mulher. Funciona em todo o país e no exterior, 24 horas por dia. A ligação é gratuita. O serviço recebe denúncias, dá orientação de especialistas e faz encaminhamento para serviços de proteção e auxílio psicológico. O contato também pode ser feito pelo Whatsapp no número (61) 99656-5008.

Também é possível realizar denúncias de violência contra a mulher pelo aplicativo Direitos Humanos Brasil e na página da Ouvidoria Nacional de Diretos Humanos (ONDH), do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH).