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Homem goza, mulher sofre? Carla Madeira quer, na literatura, provar que não

Carla Madeira é autora do livro "Tudo é rio" - Marcia Charnizon
Carla Madeira é autora do livro "Tudo é rio" Imagem: Marcia Charnizon

Júlia Flores

De Universa

19/03/2022 04h00

Parece um ritual obrigatório. Quem lê "Tudo é Rio (ed. Record)" —obra da escritora mineira Carla Madeira— deve postar, nas redes sociais, uma foto acompanhada do livro; caso contrário, é como se não conhecesse a história de Dalva, Lucy e Venâncio, um triângulo amoroso formado por um casal em crise e uma prostituta encantadora.

Além do trisal, o enredo perpassa por assuntos polêmicos e atuais, como liberdade sexual feminina, monogamia, masculinidade tóxica e violência contra a mulher. Talvez por isso "Tudo é Rio" tenha feito tamanho sucesso; em 2021, foi o segundo livro de ficção mais vendido no Brasil, com mais de 40 mil exemplares compartilhados, ficando atrás apenas e "Torto Arado" (ed. Todavia), do baiano Itamar Vieira Junior.

"Tudo é Rio" não é novo. Foi lançado pela primeira vez em 2016, pela editora independente Quixote. Em 2021, foi republicado pela Record. Para a autora, o livro instiga "uma força que já está dentro das pessoas". Em entrevista a Universa, Carla comenta o sucesso da obra que, para ela, só se tornou o que é por causa da "força do boca a boca", ou, melhor, "da selfie-a-selfie".

Se os elogios correm soltos à escrita de Carla, há inúmeras críticas —para não dizer comentários odiosos— ao fim da trama, que (spoiler!) concretiza o perdão a um agressor físico.

Preparando-se para relançar seu segundo romance, "A Natureza da Mordida", e pouco tempo depois de ter publicado "Véspera", Carla assume estar vivendo um processo de "concentração em si mesma" para lidar com as críticas e elogios recebidos juntos com a repercussão de seus livros.

"Não quero me encantar com os elogios, nem me derrubar com as críticas", comenta. O que Carla quer com suas histórias é, na verdade, investigar como o ser humano chega aos extremos e, para isso, não tem medo do cancelamento.

UNIVERSA: Você não escreveu "Tudo é Rio" de uma vez só e já revelou ter feito uma pausa de 15 anos na produção desse livro. Pode contar mais sobre esse processo?

CARLA MADEIRA: Comecei a escrever o livro quanto tinha 33 anos, e hoje estou com 56. No começo, era uma outra história. No momento em que escrevi o capítulo em que Venâncio comete violência física contra o filho, paralisei. Passei 15 anos longe da obra.

Nesse meio tempo, tive dois filhos, me separei, vivi um segundo casamento (e hoje já estou no terceiro!). A experiência da maternidade me deu recursos para encaminhar a situação que eu tinha proposto. Antes, não tinha vivência para compreender o significado de uma agressão como aquela.

A escritora Carla Madeira - Marcia Charnizon - Marcia Charnizon
A escritora Carla Madeira
Imagem: Marcia Charnizon

Autores só podem escrever pelo que já passaram? Como se houvesse um "espaço de fala" na literatura?
Não acho que isso seja uma regra, mas comigo foi assim. Acho que a gente sempre escreve a partir do que nos afeta --seja pelo que temos, ou pelo que não temos. Para mim, o afeto é onde a literatura acontece.

Ao meu ver, não existe isso de "lugar de fala" na literatura; eu sempre escrevi sobre mulheres, mas em "Véspera" tive que desenvolver personagens masculinos. Foi mais desafiador fazer isso —pedi ajuda de outros homens, por exemplo, quando precisei descrever uma cena de masturbação masculina. Queria abordar como a sexualidade oprimida afeta a vida dos homens.

Masculinidade tóxica, inclusive, é um tema que você aborda tanto em "Tudo é Rio" quanto em "Véspera".
Acho que a masculinidade tóxica é uma questão em que estamos imersas. No Brasil a cada 10 minutos uma mulher é estuprada e a cada dia três são mortas pelos seus parceiros. Eu não escapei dessa questão.

"Véspera" aborda essa problemática de uma forma mais direta do que em "Tudo é Rio".

Com o livro, questiono como chegamos a esse extremo. Ou seja: "Como estamos produzindo essa masculinidade tóxica enquanto sociedade?" Me interessa olhar para esse lugar e tentar achar pistas que respondam à questão.

Várias críticas foram feitas ao final de "Tudo é Rio", quando Dalva desculpa Venâncio pela agressão. Em uma sociedade machista como a que vivemos, você não acha que essa escolha pode ser problemática?
O perdão que construí ali foi muito mais na direção do agredido do que ao agressor. É Dalva que precisa perdoar para seguir em frente... Não quer dizer que ela vai continuar vivendo com Venâncio, tanto é que no último parágrafo do livro escrevi a frase "o próximo passo traz a possibilidade dos abismos". Ela precisava perdoar para sair da paralisia e permitir que o rio continue seu movimento.

Acho que quando a vítima não sai dessa paralisia, não consegue cessar o ódio, ela passa a estar na mão do agressor todo os dias, como se a agressão fosse revivida diariamente

Perdoar é fundamental para gente, para o humano. De certa forma, Dalva é a vítima, mas depois assume as rédeas da situação e faz Venâncio pagar pelo que fez. Isso a coloca em um lugar importante, de quem é capaz de tomar o encaminhamento da história para si.

Você não ficou com medo de ser cancelada nas redes sociais ao 'perdoar um agressor'?
Não. E essa era a questão que queria trazer com o livro: uma mulher pode perdoar o homem que a agrediu? A gente pode perdoar o imperdoável?

O perdão existe para perdoar o imperdoável, o perdoável se resolve com uma boa conversa, com o tempo. É claro que a agressão é imperdoável, mas as pessoas podem ser perdoadas.

Eu quero viver em um mundo que isso é verdade, porque senão estaríamos vivendo no inferno, lugar em que se arrepender não faz a menor diferença. É isso que queremos para a gente? É uma questão que eu quero investigar e o leitor vai decidir o que fazer com isso.

O perdão, então, seria a cura do machismo?
Acho que temos que olhar para o extremo e entender o que está fazendo a gente chegar nesses lugares, entender suas vésperas. A gente não resolve essa conversa pintando a pessoa de "boa" ou "malvada". Não é só isso, somos nós enquanto humanidade que estamos produzindo essa violência. Se a gente não olha para esse lugar, questiona como é que um homem mata a sua mulher, temos poucas chances de sair desse lugar. A minha investigação é nesse sentido.

Quando você começou a escrever "Tudo é Rio", há 15 anos, já tinha a ideia de criar uma personagem tão livre sexualmente quanto a Lucy?
A Lucy, da primeira vez que comecei a escrever o livro, não existia na força que ela existe agora. Sim, já tivemos outras mulheres assim na literatura, prostitutas que encantam os homens; só que no começo era outra coisa que eu queria para ela.

Ela só existe desse jeito, livre sexualmente, graças a liberdade do momento em que estava vivendo quando retornei à escrita do livro. Não tem como, a gente acaba sendo atravessado pelas questões sociais.

Na sua opinião, qual o grande diferencial da nova Lucy?
A Lucy é quem é porque controla o próprio corpo; ela que define quando vai transar, quanto vai cobrar, com quem, como, onde ela quiser e a hora que ela quiser. Tudo isso em uma sociedade em que está posta que o sacrifício é da mulher e o gozo é do homem.

"A masculinidade tóxica é uma questão em que estamos imersas", diz Carla Madeira - Marcia Charnizon - Marcia Charnizon
"A masculinidade tóxica é uma questão em que estamos imersas", diz Carla Madeira
Imagem: Marcia Charnizon

Você esperava tamanho sucesso com a reimpressão de "Tudo é Rio"?
Eu vejo que o livro reverbera uma força que está dentro das pessoas. Claro que a obra tem a força dela, mas acho que a repercussão também aconteceu porque, ao ser lido, "Tudo é Rio" encontrou uma coisa que já estava nas pessoas.

Uma resenha publicada na "Folha de S.Paulo" chamou "Tudo é Rio" de folhetim com tempero de fábula. Como você lidou com essa crítica? Ser "famosa" também tem seu lado ruim?
Acho que o livro tem ressonância em leitores consistentes, que leem com frequência. Aquela crítica deprecia o leitor para tentar provar o argumento do autor. Estou em um momento de autoconcentração; não quero me iludir com os elogios, nem quero que as críticas me derrubem.