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Mãe, esposa, avó: elas perderam para covid mulheres que eram base familiar

Silmara e Mariana perderam para a covid mulheres que eram figuras essenciais em suas famílias - Rafael Martins/UOL e Pryscilla K/UOL
Silmara e Mariana perderam para a covid mulheres que eram figuras essenciais em suas famílias
Imagem: Rafael Martins/UOL e Pryscilla K/UOL

Ana Bardella

De Universa

10/10/2021 04h00

Enquanto estados e municípios flexibilizam as medidas de proteção pela covid, trabalhadores retornam do home office, amigos se reencontram em bares e restaurantes voltam ao funcionamento pleno, diversas famílias ainda aprendem a se reorganizar sem aqueles que eram peças fundamentais para sua estrutura —financeira ou emocional.

São famílias que perderam mulheres com papel-chave em sua dinâmica. Mulheres que agora fazem parte das estatísticas e constam entre os 600 mil mortos por covid registrados no Brasil na última sexta-feira (8).

"Minha mãe vacinou pessoas a vida toda, mas não teve tempo de ser vacinada"

Mariana teve toda a família contaminada com covid - Rafael Martins/UOL - Rafael Martins/UOL
Mariana teve toda a família contaminada com covid
Imagem: Rafael Martins/UOL

"Sou jornalista e trabalhava em uma faculdade de Salvador, na Bahia. Em 2019, deixei o cargo e me mudei para o interior com meu marido, em busca de mais qualidade de vida. Meus pais continuaram morando na capital, e nos víamos com frequência.

Pouco tempo depois, a pandemia de covid-19 teve início no Brasil e, como atuo na área de jornalismo científico, ingressei em um grupo de comunicadores que, em parceria com as instituições de saúde, visava disseminar informações corretas sobre a doença.

Até então, minha irmã vivia em Belo Horizonte com o companheiro e o filho. Mas se divorciou e voltou para a casa dos meus pais com meu sobrinho, que tem 5 anos. Por ela estar desempregada, minha mãe, que era aposentada, bancava a maior parte da alimentação da casa, além do plano de saúde da criança e outras despesas. Meu pai também contribuía, mas o valor da sua aposentadoria era menor e insuficiente para dar conta de tudo.

Em janeiro de 2021, precisamos nos expor a lugares que não frequentávamos antes e acabamos adoecendo. Minha irmã foi a primeira a manifestar sintomas. Em seguida, todos nós, incluindo meu marido, contraímos a doença.

No oitavo dia de sintoma, fui internada com complicações. Minha mãe foi internada no dia seguinte, mas ninguém me contou até que eu tivesse alta, 12 dias depois.

Minha mãe, que trabalhou a vida inteira como técnica de enfermagem, no interior da Bahia, cuidando e vacinando aqueles que precisavam, não teve tempo de aproveitar o benefício da vacina contra a covid.

Aos 63 anos, poderia ter sido salva, mas, por causa de uma ação ineficiente do governo, passou 30 dias intubada, até falecer.

Foi uma situação muito dura. Por três meses, precisamos contar com a ajuda financeira de familiares de longe, incluindo da minha avó de mais de 90 anos, para segurar as pontas em casa, até conseguirmos acesso ao benefício de pensão por morte.

Hoje, minha irmã voltou a trabalhar, e nos organizamos novamente. No entanto, perdemos nosso pilar econômico e emocional, nosso porto seguro.

Quando vejo o retorno às aglomerações, só consigo pensar que esse pode ser um passo precipitado, porque o vírus ainda está em circulação e quem já sofreu as consequências dele na pele sabe o quanto é perigoso."

Mariana Alcântara, 38 anos, jornalista, mora em Cruz das Almas (BA)

*

"Sinto como se estivesse voltando de uma guerra"

Silmara Marília perdeu a avó e o marido - Pryscilla K./UOL - Pryscilla K./UOL
Silmara Marília perdeu a avó e o marido
Imagem: Pryscilla K./UOL

"Moro em uma cidade com apenas 4.000 habitantes. Aqui, trabalho com atendimento bancário, e meu marido, que tinha 36 anos, trabalhava como médico veterinário e fazendeiro. Ele era uma figura bastante querida: simples, humilde, mas muito comunicativo e que chegou a se candidatar a vice-prefeito da região.

Nós estávamos juntos havia 16 anos, sendo oito deles de casamento. Temos duas filhas, a mais velha de três anos, a mais nova de apenas um.

Com a chegada da pandemia, adaptamos nossas atividades. No início, passamos quatro meses isolados em um sítio que temos a 3 km da cidade. Eu ia e voltava todos os dias de lá, já que continuava exercendo minhas funções presencialmente. Mas, quando percebemos que não havia previsão para a quarentena acabar, retornamos à nossa casa.

Tomávamos muito cuidado com a minha avó, já que ela tinha problemas de saúde e era considerada grupo de risco. Ela era a matriarca da família, cuidou de mim e das minhas irmãs na infância, enquanto minha mãe trabalhava fora. Na casa dela, havia sempre café, almoço e jantar para quem quer que aparecesse.

Ela resolvia todos os conflitos de um jeito amoroso. Não deixava que os parentes brigassem, metia a colher em tudo, mas sempre de forma serena.

Infelizmente, em março deste ano, a covid-19 atingiu nossa família. Meu avô, minha avó, duas tias, minha mãe e meu marido se contaminaram ao mesmo tempo.

Foi um período muito delicado, porque queria ajudar meus familiares, ao mesmo tempo em que precisava manter o contato restrito. Acabou que todos os doentes, com exceção do meu marido, se juntaram na mesma casa, e quem estivesse se sentindo menos pior cuidava dos demais.

Infelizmente, minha avó precisou ser hospitalizada e não resistiu. O luto veio em meio à preocupação, uma vez que o meu marido, isolado no sítio, também não apresentava melhora. Conforme sua saturação baixou, tivemos que hospitalizá-lo.

Foram 15 dias internado no CTI até que precisaram intubar. Mas o organismo dele não reagiu bem, e ele também se foi.

Tenho recebido muito apoio dos meus familiares, mas ainda não consegui retornar às minhas atividades. E precisei me inteirar dos negócios do meu marido, mesmo estando com o psicológico abalado, para estabilizar nossa situação financeira.

Quando vejo o tal do 'novo normal', por um lado fico feliz. Não quero minhas filhas afastadas da escolinha, sem brincar, sem interagir com outras crianças. Defendo a vacina e sei que ainda teremos que viver por muito tempo convivendo com a covid.

No entanto, sem as pessoas que eu amo, sinto como se estivesse voltando de uma guerra, com a família despedaçada."

Silmara Marília, 37 anos, agente de atendimento bancário, de Paineiras (MG)

*

"Perdi minha esposa, mas sinto que é importante seguir em frente"

"Eu e minha esposa estávamos juntas havia quatro anos e meio. Era o relacionamento mais feliz em que já estive. Quando nos conhecemos, ela já tinha dois filhos biológicos, e eu os adotei. Vivíamos em uma estrutura familiar bastante comum e de forma harmoniosa.

Quando a pandemia chegou, passamos a nos precaver, adotando as medidas de segurança, mas elas não foram suficientes. Bastou um contato com uma pessoa com suspeita de covid-19 para que ela se contaminasse.

Primeiro, mesmo com o resultado do teste positivo, apresentou sintomas leves, como os de uma gripe. No entanto, de uma noite para a outra, passou a ter falta de ar insuportável. Então, levei-a para o hospital, e ela precisou ser internada.

Foram sete dias de internação, três deles intubada, até que ela não resistiu. Assim que recebi a ligação do hospital, pedindo que eu fosse até lá com a identidade e um comprovante de residência dela, tive uma crise de ansiedade, pois já sabia que receberia a notícia da sua morte.

A partir de então, minha vida virou de cabeça para baixo. Tive apoio físico somente da minha sogra, já que meus familiares moram distantes. Por causa disso, me senti muito solitária. Refleti sobre o que faria dali em diante.

Assim como as minhas filhas, de 10 e 11 anos, também perdi minha mãe na infância. Sei que um dos problemas é se sentir vítima da situação e não gostaria que elas se enxergassem assim.

Sei que do ponto de vista político e organizacional, a pandemia poderia ter sido tratada de uma forma mais inteligente e cuidadosa, mas, infelizmente, as coisas não aconteceram assim e temos que continuar: nos proteger da melhor forma e criar coragem para voltar.

No íntimo, é difícil aceitar que um relacionamento tão recíproco e dedicado seja tirado de você. Mas de nada adianta bater na tecla da não-aceitação. Eu nunca vou esquecê-la, a saudade vai sempre chegar, mas eu vou aprender a lidar com ela. É preciso colocar uma luzinha à frente e continuar seguindo o caminho."

Bruna B., 35 anos, cozinheira, do Rio de Janeiro (RJ)