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Acesso a mamografia no SUS cai 40%: 'Mais mulheres com câncer avançado'

Juliana Cristina Sardi, 38 anos descobriu o câncer de mama em julho de 2020 e só conseguiu marcar o primeiro exame na rede pública 7 meses depois de suspeitar da doença num autoexame - Arquivo Pessoal
Juliana Cristina Sardi, 38 anos descobriu o câncer de mama em julho de 2020 e só conseguiu marcar o primeiro exame na rede pública 7 meses depois de suspeitar da doença num autoexame Imagem: Arquivo Pessoal

Colaboração para Universa

07/10/2021 16h00

Foi em meio à pandemia do novo coronavírus que Juliana Cristina Sardi, 38 anos, desconfiou que pudesse estar com câncer de mama. Em julho de 2020, o cenário era de quase 100 mil mortos em decorrência do novo coronavírus. O sistema de saúde estava comprometido, já que a prioridade das redes pública e particular era atender pacientes com covid-19.

Foi em casa, em um autoexame da mama, que Juliana sentiu um caroço no seio. Na mesma semana, ela procurou um posto de saúde de seu bairro, na cidade de Santa Bárbara d'Oeste, interior de São Paulo.

No entanto, a primeira consulta foi realizada quase dois meses depois, em setembro. E a agenda do SUS (Sistema Único de Saúde) para Juliana fazer uma ultrassonografia de mama ou uma mamografia estava disponível somente para janeiro de 2021. Com o nódulo no seio crescendo, ela decidiu, então, buscar a rede privada e confirmou o câncer.

Só então conseguiu fazer a biópsia e iniciou o tratamento na rede pública, sete meses depois —um período considerado longo na medicina. Juliana está junto de 64 mil mulheres, com 30 anos de idade ou mais, que receberam o diagnóstico de câncer de mama no Brasil em 2020, segundo dados do INCA (Instituto Nacional de Câncer).

A chance de cura é de 95% quando a doença é descoberta em seus estágios iniciais. Mas nem sempre o tempo entre a realização do exame e o início do tratamento obedece à regra de no máximo 60 dias. E este problema se agravou durante a pandemia. No ano passado, a realização de mamografias caiu 40% em todo o país —esse exame é o mais importante para detectar tumores do câncer de mama de forma precoce.

Em 2019, foram realizados 3 milhões de exames de radiografia de mamas. Esse número vinha crescendo ano a ano, segundo um levantamento inédito realizado a pedido do Instituto Avon pela empresa social de jornalismo de dados Gênero e Número, a partir da base pública de dados SIA-SUS, o sistema de registro dos gestores municipais e estaduais de informações de atendimento do SUS.

Mas, em 2020, o volume total de mamografias realizadas foi de 1,8 milhão. Também as biópsias e as ultrassonografias de mama tiveram redução de 28% no ano passado.

Para a coordenadora de Pesquisa e Impacto do Instituto Avon, Beatriz Accioly, os dados preocupam. "Na prática, teremos menos mulheres chegando ao sistema com diagnóstico precoce e mais mulheres chegando com cânceres avançados", constata Accioly.

"É a receita para um colapso do sistema de saúde. A grande preocupação dos especialistas é de como o absorver essa demanda ainda maior de pacientes em estágio avançado e necessitando de tratamento contínuo", conclui a executiva do Instituto Avon.

Correndo contra o tempo para buscar seus direitos

Dependendo do tipo de câncer, dois meses podem ser determinantes para a cura. De acordo com a lei 12.732, de 2012, 60 dias é o prazo máximo entre receber um diagnóstico assinado por um médico e iniciar o tratamento no SUS. Em casos mais graves, o período de início do atendimento tem que ser menor.

"Quem não tem acesso a uma consulta ou a um tratamento médico pode entrar na Justiça para que seus direitos sejam garantidos o mais rápido possível", diz Claudia Nakano, advogada especializada em direito de saúde. "Os juízes apreciam o requerimento de tutela de urgência, que é uma medida liminar, às vezes no mesmo dia, a depender da gravidade, para que o tratamento seja concedido."

Para a médica Rosemar Macedo Sousa Rahal, da diretoria da SBM (Sociedade Brasileira de Mastologia), desde o ano passado o governo federal se concentrou na pandemia do coronavírus e deixou de lado outras doenças com potencial grave, que não podem tardar o diagnóstico nem o tratamento, como o câncer.

"Vamos pagar um preço alto por isso: da saúde das mulheres, da questão desumana, da questão financeira. O tratamento vai custar mais para o governo, já que muitas mulheres vão chegar mais doentes à rede pública."

Dado o cenário atual de dificuldade e demora no acesso a exames preventivos contra o câncer de mama, a tendência é de aumento do custo para tratamentos mais avançados. Mas o que se vê atualmente é um corte de orçamento.

Ainda segundo o levantamento do Instituto Avon, com base nos dados do SIA-SUS, no ano passado houve uma redução de 26% da verba total destinada aos estados pelo Ministério da Saúde para a realização de procedimentos e diagnósticos de câncer de mama no país.

Em 2019, as secretarias de saúde estaduais receberam R$ 49 milhões para realização desses tipos de exame. Em 2020, o orçamento ficou em R$ 36,5 milhões. Isso significa 471.239 procedimentos de diagnóstico de câncer a menos no período de um ano.

Câncer na pandemia

Para Luciana Holtz, fundadora e presidente da Oncoguia, ONG que defende os direitos de pacientes com câncer, não há um protocolo claro sobre como lidar com outras doenças graves, como o câncer, durante a pandemia. "Alguns hospitais cancelaram as cirurgias, outros não. Faltou uma diretriz nacional."

Juliana sentiu isso na pele. "Minha médica me explicou que eu deveria ter feito uma cirurgia no início deste ano, mas, por causa da pandemia, a orientação foi para que eu fizesse primeiro as sessões de quimioterapia. Com certeza a pandemia interferiu muito no meu atendimento e tratamento", concluiu.

Mas o problema não é uniforme, pacientes de alguns estados sofreram mais do que outras, o que mostra a falta de equidade no acesso a serviços de saúde. De acordo com o levantamento do Instituto Avon, o estado com mais mulheres prejudicadas foi a Bahia, com queda de 38%, seguido do Rio de Janeiro, com menos 34% de exames preventivos realizados, e Pará, com redução de 24%.

A recomendação da OMS (Organização Mundial da Saúde) para os países é a cobertura de exames contra o câncer de mama para pelo menos 70% das mulheres com idades entre 50 e 69 anos. Mas, na última década, cerca de 25% das mulheres nessa faixa etária no Brasil conseguiram realizar mamografias pelo sistema público de saúde.

No ano passado, esse índice caiu pela metade, de acordo com a SBM. "A pandemia ainda não acabou e, por mais que os sistemas estejam reabrindo, segundo alguns especialistas, a reorganização da saúde levará de dois a três anos", alerta Beatriz Accioly, do Instituto Avon.

Procurado sobre a diminuição do investimento na prevenção do câncer de mama, o Ministério da Saúde não retornou até o fechamento desta reportagem.