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'Rita sempre deu valor ao que é, e não ao que esperam dela', conta João Lee

João Lee e Rita Lee: filho do meio da cantora é músico, DJ, produtor e assina curadoria de exposição sobre ela - Reprodução
João Lee e Rita Lee: filho do meio da cantora é músico, DJ, produtor e assina curadoria de exposição sobre ela Imagem: Reprodução

Beatriz Mazzei

Colaboração para o UOL

02/10/2021 04h00

As diversas camadas de Rita Lee estão exibidas na nova exposição "Samsung Rock Exhibition Rita Lee", em São Paulo no MIS (Museu da Imagem do Som). A exibição conta com direção artística de Guilherme Samora, estudioso do legado da artista e cenografia de Chico Spinosa. A cantora, aos 73 anos, acompanhou a idealização e concepção da amostra ao lado do filho do meio, João Lee, que assina a curadoria da amostra. João é músico, DJ, e produtor musical.

Em uma viagem completa à memória da artista, os visitantes são convidados a percorrer 18 salas que exibem desde a infância encantada pelo Peter Pan até a vovó Lee, escritora de livros infantis, passando pela Rita censurada e presa durante a ditadura. A experiência se completa com os manequins realistas da artista trazendo os figurinos originais de shows e apresentações de televisão.

"Queremos mostrá-la desde a época de criança sonhadora, fazendo uma conexão de como essas inspirações foram levadas para a carreira artística", conta João Lee em entrevista a Universa.

Ao chegar na exposição, o início da jornada é marcado por jogo de luzes e atmosfera intergaláctica que sugerem a imersão no mundo da estrela Rita Lee Jones. Com material coletado e adaptado de sua autobiografia lançada em 2017, as salas trazem tom em primeira pessoa, assim como no livro.

Rita Lee com a família, na infância, no bairro da Vila Mariana  - Divulgação - Divulgação
Rita Lee com a família, na infância, no bairro da Vila Mariana
Imagem: Divulgação

Na primeira sala, a artista abre as portas do porão do casarão de sua família na Vila Mariana, bairro onde viveu toda sua infância ao lado dos pais, Romilda Padula Jones uma italiana religiosa, carinhosamente chamada de Chesa, e Charles Fenley Jones, um americano militar e médico. A Rita é a caçula das irmãs Mary e Virgínia.

No centro da sala, a primeira televisão dos Jones com uma imagem de Nossa Senhora de Aparecida em cima, uma representação de como sua mãe deixava. Para resgatar a criança Rita, a área também traz seu álbum do Peter Pan completo e ironicamente, um frasco de lança-perfume de 1950, que o pai usava nos jogos do Corinthians. Apesar de defini-lo como rígido e conservador em seu livro, a amostra relembra esses momentos de descontração.

Me lembro daquele tubo de lança perfume. Ele tinha um papel muito importante de celebração dentro da família da minha mãe. Era mais um aromatizador do que um lança mesmo. Não é à toa que virou letra de música depois.

Álbum de Família

A atmosfera familiar segue na próxima sala, onde a exposição insere os visitantes em um clima de café da tarde na casa da Rita por meio do álbum de família. Na parede, recordações das gerações da família Lee com fotografias em preto e branco de Charles e Chesa se casando, fotos do marido Roberto de Carvalho, com quem é casada até hoje, e dos filhos Beto (44), João (42), e Antônio (40). Para finalizar, registros da nova geração composta pelos netos da cantora: Izabella, filha do primogênito, e Arthur, filho do caçula.

Crescer com todos eles foi uma alegria. Convivi com a minha avó até meus 10 anos, ela era um doce. Todas as mulheres da minha família eram acolhedoras. Existia um senso de proteção muito forte entre elas e com a gente.

Durante toda a infância e adolescência, apesar da rotina agitada do meio artístico, João fala da mãe como uma figura presente. "Quando eu era, criança vivia um paradoxo entre o que as pessoas diziam da minha mãe publicamente e o que eu via em casa. Falavam que ela era roqueira, falava palavrão, era rebelde, mas o que eu via era uma pessoa carinhosa e doce".

Entre a figura pública e a que vivia no cotidiano, João diz que o lado materno prevalece aos seus olhos. "Pra mim, ela é muito mais a minha mãe. Quando eu tô sentado conversando com ela no sofá, nem lembro que ela é uma artista. Tinha vezes em que só me dava conta quando a gente saia e aí era inevitável não lembrar", relata.

R & R: Rita e Roberto

Roberto de Carvalho e Rita Lee com os filhos João e Beto - Reprodução - Reprodução
Roberto de Carvalho e Rita Lee com os filhos João e Beto
Imagem: Reprodução

Vindo de uma família tradicional carioca, o compositor e multi-instrumentista Roberto de Carvalho foi o grande parceiro musical e de vida de Rita Lee. O casal se conheceu nos anos 70 em um show do Ney Matogrosso, onde Roberto fazia parte da banda como guitarrista.

Desde aí, seguem juntos contrariando as estatísticas dos casais do meio artístico. Hits de sucesso como "Mania de Você" e "Banho de Espuma" revelam a paixão avassaladora do casal que "faz amor por telepatia", mas para o filho do casal, a amizade e a coragem de viver sob as próprias regras é o que faz com que Rita e Roberto estejam junto há mais de 40 anos.

O casal nunca escondeu da mídia que já viveu em apartamentos diferentes dentro do mesmo prédio para preservar a individualidade e manter o relacionamento vivo.

Eles são muito modernos, então se permitiram mudar a dinâmica. Nessa época, o quarto da minha mãe ficava no andar de cima, então à noite ela dava um soco na parede para o meu pai ir para a varanda pra que ela pudesse descer uma cestinha com um presentinho para ele. Foi uma época de namorico depois de quase 30 anos juntos.

Para o filho, a questão do casal viver na estrada juntos, em turnês e shows também acabava reforçando essa necessidade de terem se afastado um pouco nos momentos fora do trabalho. A relação dos dois é um dos temas das salas da exposição.

Música brasileira e Ditadura

Os irmãos Sérgio e Arnaldo Batista e Rita Lee, integrantes do grupo Os Mutantes no 3 Festival de Música Popular Brasileira da Record, em 1967 - Acervo UH - Acervo UH
Os irmãos Sérgio e Arnaldo Batista e Rita Lee, integrantes do grupo Os Mutantes no 3 Festival de Música Popular Brasileira da Record, em 1967
Imagem: Acervo UH

Entre 1964 e 1985 o Brasil viveu a ditadura militar. O regime trouxe profundas marcas para a cultura do país por conta da censura, que submetia trabalhos artísticos à análise de liberação por meio de critérios morais e políticos.

Foi nesse contexto que Rita Lee ingressou na música brasileira, que na época, vivia o conflito entre a brasilidade da Bossa Nova da Jovem Guarda e as influências estrangeiras das guitarras elétricas. No meio da dualidade, Rita Lee dançou com todas as influências para criar sua própria identidade musical.

Inicialmente, nos anos 60, foi integrante da banda O'Seis, com as amigas do colégio e os irmãos Sérgio e Arnaldo Baptista. Poucos anos depois, a formação deu origem aos Mutantes, composta pelo trio da Rita e os Batista. Com a banda, lançou grandes hits como "Panis Et Circensis", "Ando Meio Desligado", "Balada do Louco".

Essas passagens musicais da artista são mostradas na exposição na sala dos anos 60. Nessa área, destaque para Rita Lee vestida de noiva com os Mutantes no Festival Internacional de 1668 da TV Globo. O vestido foi roubado do figurino da atriz Leila Diniz, que estrelava na novela O Sheik de Agadir.

Na sequência, nos anos 70, se uniu à banda Tutti Frutti, que marca o lançamento de um dos álbuns mais importantes de sua carreira, o Fruto Proibido.

Feminismo

Rita Lee é um símbolo do pioneirismo feminino na cena artística do rock - Divulgação - Divulgação
Rita Lee é um símbolo do pioneirismo feminino na cena artística do rock
Imagem: Divulgação

Ela foi muito pioneira. Nos anos 70, uma mulher decide fazer um álbum de rock todo cor de rosa e chamá-lo de Fruto Proibido. Ela dizia que queria chocar mesmo. Ai de quem não deixasse ela fazer isso.

A irreverência e atitude de Rita fugiam dos padrões das mulheres da época e fizeram com que a artista se tornasse um símbolo do pioneirismo feminino na cena artística do rock. Durante a carreira, trazia para suas composições a liberdade e a sexualidade feminina de forma aberta e sem tabu.

Segundo João, a artista viveu o machismo da indústria do rock na pele. "Ela me conta de reuniões de gravadora que ela fazia quando tinha menos de 30 anos. Era só ela e mais seis homens sentados na frente dela dando palpite sobre suas roupas, comportamento, opiniões políticas", conta.

Para o músico, Rita Lee contrariou a sociedade quando nos anos 50, sendo filha de um militar e de uma mulher extremamente católica, decidiu ser cantora e se aventurar no mundo do rock, ainda pouco habitado pelas mulheres.

Naquela época, esperava-se que as mulheres fossem donas de casa ou mães de família, mas a maior bandeira da minha mãe foi dar mais valor ao que ela era e não ao que a sociedade esperava dela. O feminismo faz parte da vida dela porque ela defendia acima de tudo, a liberdade de pensamento e de expressão.

A expressão do poder feminino de Rita estava em diversas canções, incluindo o hit "Cor de Rosa Choque", que precisou ser modificado vinte vezes por conta da censura.

A prisão

Rita Lee nos anos 1970 - Reprodução - Reprodução
Rita Lee nos anos 1970
Imagem: Reprodução

Após a Época Tutti Frutti, Rita Lee se aproximou ainda mais de Gilberto Gil. A amizade deu origem à turnê Refestança de 1977. Os shows vieram depois da prisão de Rita Lee. "Ele também havia sido preso e decidimos unir os ex-presidiários para cantar Brasil afora" conta a artista.

Não à toa, Gilberto Gil tornou-se o padrinho de Beto Lee, o primeiro filho da artista, que viveu dias na prisão, ainda na barriga da mãe. Rita Lee foi presa durante sua primeira gestação. Na ocasião, policiais entraram em sua casa à noite procurando por drogas e implantaram os ilícitos para levá-la à cadeia. O caso ocorreu como uma forma de revanche depois do assassinato de João, um fã de Rita Lee que estava no show dos Mutantes com o namorado, quando foi morto por policiais.

A mãe de João reencontrou-se com a artista depois da morte do filho e entregou uma carta a ela dizendo que o filho era apaixonado por ela e havia morrido por sua causa. Após esse encontro, Rita se aproximou da mãe do fã para encontrar os responsáveis pelos crimes até chegar nos policiais.

Quem sou eu pra dizer que minha mãe não fazia coisa errada? Mas essa prisão veio no pior momento, ela estava grávida e realmente tranquila. Ela me disse que os policiais que a prenderam foram nas delegacias em São Paulo, mostrando ela aos oficiais com fosse ela fosse um troféu.

Esses relatos têm espaço em uma sala que dá destaque à prisão da artista, incluindo seu manequim com o figurino de presidiária usado por um show que fez assim que saiu da cadeia. Na sala também está a carta da mãe do fã e uma carta emocionante que Rita escreveu de dentro do cárcere para Roberto de Carvalho.

Como curador da exposição, João Lee ressalta a importância de dar espaço a essa fase histórica de repressão militar para conscientizar e educar o público sobre esse período.

Rita Pop Star e seu legado

Em uma caminhada cronológica, no primeiro andar da exposição, o visitante entende quem é Rita Lee, quais são suas raízes familiares e sua essência pioneira e transgressora. Já no segundo, se depara com uma artista consolidada e conhecida em todo o Brasil. Após a ditadura, o fim dos anos 80 e os anos 90 são marcados por muitas inserções de Rita Lee na mídia. Nessa época, suas músicas viraram tema de novela e foi convidada para diversas inserções na televisão brasileira com destaque para o programa da Hebe em 1997 pela divulgação do disco Santa Rita de Sampa.

O dia ficou marcado pelo selinho que Rita Lee deu na Hebe de forma não planejada. A partir deste dia, a apresentadora passou à famosa tradição de dar selinhos nos artistas que passavam pelo programa.
Após Santa Rita de Sampa, a artista lançou mais discos, entre eles o sucesso "Acústico MTV", "3001", e "Balacobalo". A cantora deixou os palcos em 2012 e desde então vive de forma mais reservada com o marido, a família e os netos.

"Ela sempre teve muita criatividade, então ao sair da rotina da música, foi mergulhando em outras áreas. Começou a escrever os livros infantis e a pintar bastante", conta João. Chamados de "Amiga Ursa" e "Dr. Alex", os livros de Rita Lee são para crianças, trazendo à tona a sua causa do coração, que é a proteção animal.

Minha mãe sempre teve uma questão de defender os marginalizados, indefesos... Tem até uma história da vida dela em que ela vai adotar um cachorro e a moça do espaço diz com que só sobrou a cadela manca, como se aquilo fosse ruim. Na mesma hora ela diz 'é essa mesmo que eu quero'.

Rita Lee tem músicas pré-prontas para serem lançadas nos próximos anos - Reprodução / Instagram - Reprodução / Instagram
Rita Lee tem músicas pré-prontas para serem lançadas nos próximos anos
Imagem: Reprodução / Instagram

Em 2021, no meio de um tratamento de câncer no pulmão, João diz que Rita Lee passa seu tempo dançando com as músicas do álbum "Rita Lee & Roberto Classix Remix", que traz uma roupagem eletrônica para as faixas do casal. O álbum foi inteiramente produzido por João Lee em um trabalho que durou dez anos de imersão na obra de seus pais.

Mesmo ansiosa com o resultado, segundo João, Rita Lee gostou tanto da compilação que chamou um dos DJs do álbum para produzir seu último lançamento com Roberto, chamado "Change", um single cantado em inglês e francês. "Quando ela ouviu as músicas levantou pra dançar. Fiquei feliz de trazer de volta a ela essa empolgação pela música que estava adormecida", lembra João.

Para Universa, o produtor revela que o casal já tem músicas pré-prontas a serem lançadas nos próximos anos.

O mais importante da parceria dos meus pais é que um provoca o outro a andar para frente. Nesse momento de tratamento de saúde da minha mãe, eles seguem juntos. Minha mãe é uma pessoa iluminada. Sou privilegiado de ter os meus valores vindo dela. Ela é realmente um espetáculo.

Serviço | Samsung Rock Exhibition Rita Lee
Data: a partir de 23 de setembro de 2021
Local: MIS - Museu da Imagem e do Som - Avenida Europa, 158, Jardim Europa - São Paulo/SP
Horário: de terça a domingo, das 10h00 às 18h00
Ingressos: a partir de R$ 25,00, nas plataformas da Ingresso Rápido e INTI
Classificação indicativa: Livre