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Mães lésbicas têm dificuldade ao registrar filhos; como garantir o direito?

Marcela Fecuri e Daniela Gibertoni são mães de Helena e Rubens, de 2 anos - Arquivo pessoal
Marcela Fecuri e Daniela Gibertoni são mães de Helena e Rubens, de 2 anos Imagem: Arquivo pessoal

Mariana Gonzalez

De Universa, em São Paulo

01/03/2021 04h00

Quando deu à luz os gêmeos Helena e Rubens, há dois anos, a executiva Marcela Fecuri não imaginava que eles passariam por seu primeiro episódio de preconceito já nas primeiras horas de vida. O motivo? Eles são filhos de um casal homoafetivo. E, diferentemente das outras crianças nascidas no mesmo dia, na mesma maternidade, tiveram que esperar uma semana para ter certidão de nascimento.

Coisa bem parecida aconteceu com a administradora Cristina Martins: "Por que todos os outros casais conseguiram sair do hospital com os filhos registrados e nós não?", diz, ao contar sua história a Universa.

Das enfermeiras que preenchem a papelada ainda na maternidade aos documentos exigidos em cartório, mulheres lésbicas enfrentam despreparo e preconceito na hora de registrar seus filhos. Universa ouviu dois casais, uma advogada e uma jurista para entender por que ainda é tão difícil registrar uma criança com duas mães no Brasil.

"Só meu nome estava lá, a excluíram da nossa maternidade"

Marcela Branco familia - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
"O casal heterossexual que estava no quarto ao lado conseguiu emitir a certidão no dia do nascimento, nós não"
Imagem: Arquivo pessoal

"Antes do parto, fomos fazer uma visita ao hospital. Conversamos, nos apresentamos, perguntamos quais documentos teríamos que levar, tudo para garantir que não teríamos problema. No dia, reuni absolutamente todos os documentos relativos à união estável — na época, ainda não éramos casadas — e ao processo de inseminação.

Enquanto eu esperava para fazer a cesárea, a médica se referia à Dani como a outra mãe dos bebês. Nós demos as mãos, nos beijamos quando os bebês nasceram, demonstramos afeto de diversas formas, tudo em frente à equipe médica. Foi ela que cortou o cordão umbilical, mostrou os bebês para as nossas famílias, enfim. Correu tudo bem.

No final do dia, percebi que a Dani estava estranha. Perguntei, ela disse: 'Não é para você ficar brava, a gente vai dar um jeito nisso', e me deu a DNV (Declaração de Nascido Vivo).

No documento, assinado por uma das enfermeiras que estava na sala de parto e sabia que a gente era um casal, eu constava como mãe solteira. Só meu nome estava lá, o da Dani não. A excluíram da nossa maternidade.

Falei: 'Não quero saber, vão ter que mudar isso'. Só que eles não podem emitir outra DNV. Então eles rasuraram o documento, informando a união estável, mas ainda assim sem o nome da Dani. Isso deu um problema enorme para gente conseguir emitir a certidão de nascimento deles.

Os pais no quarto ao lado também tinha feito fertilização in vitro, mas por serem um casal hétero, conseguiram emitir a certidão no dia do nascimento, enquanto a Dani teve que ir e voltar do cartório diversas vezes, sempre com novos documentos, e mesmo assim não conseguiu. Nossos filhos só puderam ser registrados com o nome das duas mães uma semana depois de nascer, em um cartório de rua. E o hospital, que tinha prometido que poderíamos emitir a certidão dos gêmeos lá dentro, não apoiou a gente em nada.

O que dói muito é pensar que a gente fez de tudo para evitar que eles sofressem preconceito por terem nascido numa família homoafetiva, e eles experimentaram isso logo ao nascer

A executiva Marcela Fecuri é casada com Daniela Gibertoni; as duas são mães dos gêmeos Helena e Rubens, de 2 anos

"Por que outros casais podem registrar os filhos e nós não?"

"Estou com a minha companheira, Marcela, há quase 11 anos. Decidimos ter nossa primeira filha em 2015, e eu engravidei. Naquela época, ainda não tinha a normativa do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) para o registro de dupla maternidade em cartório, então só consegui registrar a Carolina no meu nome. Um ano e meio depois, fomos à Justiça e nos pediram para apresentar toda a documentação da clínica e a certidão de casamento. Nos casamos, entregamos os documentos e, em mais ou menos dois meses, conseguimos atualizar o registro da nossa primeira filha, com o nome das duas mães.

Na nossa segunda gravidez, em 2019, foi a Marcela quem engravidou. Como já existia a normativa, achei que não teríamos problemas. Mas no hospital, na hora de preencher a DNV, a enfermeira colocou só o nome da Marcela e não incluiu o meu, mesmo a gente tendo preenchido a ficha do hospital com o nome das duas.

Cristina martins familia - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
"Achei que não teríamos problemas. Mas no hospital, a enfermeira colocou só o nome da Marcela"
Imagem: Arquivo pessoal

Fui questionar, claro, e ela disse que não adiantava colocar o nome das duas porque o cartório não ia permitir. Desci até o cartório do hospital, questionei, e o funcionário disse que não tinha o que fazer, porque no sistema só tem campo para um pai e uma mãe.

Eu liguei para o tabelionato responsável pelo cartório, pedi a informação, passei o telefone para o funcionário, mas no final ele falou a mesma coisa: que não dava para fazer. Saímos do hospital sem a certidão, procurei uma advogada, e só consegui resolver dias depois.

Minha mulher estava em casa, com as duas crianças, precisando da minha ajuda, e eu tive que sair procurar cartório para resolver o que deveria ter sido feito no hospital.

A administradora Cristina Martins é casada com Marcela Fernandes; elas são mães de Carolina, 5, e Marina, de 1

Direito existe há quatro anos e deve ser respeitado

A advogada Bruna Andrade, especialista em direito homoafetivo, explica que não há lei que verse sobre o registro em cartório de dupla maternidade ou dupla paternidade, mas este é sim um direito.

Desde 2017, consta de uma normativa do Conselho Nacional de Justiça que as certidões de nascimento emitidas no Brasil não devem ter os campos "pai" e "mãe", mas "filiação", justamente para incluir famílias LGBTQ+. Os campos "avós paternos" e "avós maternos" também foram substituídos para apenas "avós".

Há, também, uma resolução do CFM (Conselho Federal de Medicina), que regulamenta o registro de crianças com dois pais ou duas mães em casos de reprodução assistida ou barriga por substituição (prática conhecida por barriga de aluguel).

Nestes casos, diz o CNJ, os pais ou mães podem emitir a certidão de nascimento mediante uma série de documentos:

  • a declaração de nascido vivo, feita no hospital;
  • uma declaração do diretor técnico da clínica, com firma reconhecida, atestando que gestação aconteceu por meio de reprodução assistida;
  • e, se só uma das duas mães for ao cartório, é necessário apresentar a certidão de casamento ou contrato de união estável do casal

Bruna explica que todos os cartórios brasileiros são obrigados a registrar crianças com os nomes de duas mães ou dois pais. Caso funcionários se recusem, a família pode fazer denunciar à corregedoria do Tribunal de Justiça do estado e ao CNJ — os dois órgãos aceitam denúncias pela internet.

Também é possível entrar com uma ação e pedir indenização ao estado por homofobia.

Realidade é de despreparo e preconceito

Pelo menos duas questões geram controvérsias: a DNV, que ainda faz distinção de gênero na filiação do bebê, e a necessidade de apresentar certidão de casamento ou união estável, o que não é exigido a casais heterossexuais. Há, ainda, despreparo dos cartórios instalados dentro de hospitais.

Declaração de Nascido Vivo

A DNV é uma ficha impressa e enviada aos hospitais pelo pelo Ministério da Saúde, com os campos "pai" e "mãe" a serem preenchidos geralmente por enfermeiras que acompanham o parto. O que acontece, na prática, é que as profissionais - por falta de preparo ou preconceito - preenchem apenas o nome da mãe gestante.

A advogada afirma que o ideal seria que o Ministério da Saúde atualizasse a DNV e trocasse os campos "pai" e "mãe" para "filiação". Mas, enquanto isso não acontece, os profissionais de saúde do hospital devem preencher a DNV com o nome das duas mães, mesmo que uma delas conste do campo "pai".

Certidão de casamento ou contrato de união estável

O segundo problema, a exigência de que o casal seja casado para que uma das mães possa ir sozinha ao cartório registrar a criança, pode ser considerado um caso de homofobia institucional.

"É comum que, entre casais héteros, o pai vá sozinho registrar o bebê, porque a mãe está de resguardo. Para casais homoafetivos, há duas opções: ou vão as duas ao cartório, mesmo que uma tenha acabado de parir, ou a mãe que vai precisa provar que há uma relação marital", explica Bruna Andrade, advogada. "Isso gera diferença no tratamento, o que pode ser entendido como homofobia."

Outro lado

Em nota, a Associação dos Registradores de Pessoas Naturais do Brasil (Arpen-BR) reforçou que o registro de crianças nascidas a partir de técnicas de reprodução assistida é regido pelo Provimento 63 do CNJ, e informou:

"O registrador civil deve necessariamente observar as normas legais e a verossimilhança das informações prestadas perante si. Por essa razão, poderá registrar a filiação declarada por um homem sozinho, portando DNV, independentemente do seu estado civil e da genitora, mas não poderá fazer o mesmo em favor de uma mulher, posto que, no estágio atual do Direito, o estabelecimento da filiação não consanguínea depende da observância de regras próprias".

A Arpen-BR informou, ainda, que "o registro de nascimento, em regra, não poderá ser recusado", a não ser que falte apresentar documentos obrigatórios, citados no início da matéria. "Nesses casos, é possível encaminhar a questão ao juiz corregedor do Cartório para que decida a questão".