Topo

"Em 90, Brasil era exemplo": feministas históricas e o aborto na Argentina

Martha Rosenberg,  uma das feministas históricas da Argentina. - MONK Fotografía
Martha Rosenberg, uma das feministas históricas da Argentina. Imagem: MONK Fotografía

Aline Gatto Boueri

Colaboração para Universa, em Buenos Aires

11/01/2021 04h00Atualizada em 11/01/2021 22h39

Elas estão em todas as manifestações de movimentos feministas em Buenos Aires, com seus lenços verdes, suas bengalas, cabelos brancos e cercadas de admiradoras de todas as idades, que pedem fotos, aplaudem e tentam se aproximar. A médica Martha Rosenberg, 84 anos, e as advogadas Nina Brugo, 77, e Nelly Minyersky, 91, formam parte do grupo de ativistas pela legalização do aborto conhecido como as "históricas". "Nos anos 90, o Brasil era o nosso exemplo", diz Martha, em entrevista exclusiva à Universa.

O trio de veteranas é pioneiro de uma luta que ganhou grande repercussão nos últimos anos, mas que foi construída lentamente, com exílios, perseguições políticas, militância e um objetivo claro: autonomia e ampliação de direitos para todas as mulheres.

Aqui, as três integrantes da Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto contam como a Argentina costurou uma aliança que levou o debate a todos os rincões do país, dos Encontros Nacionais de Mulheres, que ocorrem desde 1986 em diferentes cidades, às marchas do Ni Una Menos, em 2015, e pela aprovação da lei de interrupção voluntária da gravidez, em 2018. Naquele ano, o Senado rejeitou o projeto, mas elas também contam como, sem desanimar, conquistaram o direito nos últimos dias de 2020.

"Não é possível pensar reivindicações feministas fora do contexto democrático"
Martha Rosenberg

"Além de problematizar o aborto como uma experiência pessoal, comecei a trabalhar também a partir de uma perspectiva de saúde. Isso foi no início dos anos 1990. Nós tomávamos o Brasil como exemplo naquele momento, era uma referência dentro dos movimentos políticos e democráticos e pela saúde pública.

Foi muito importante, para mim, o Fórum Social Mundial de 2001 e 2002, em Porto Alegre, onde organizamos um debate sobre legalização do aborto. Foi um antecedente importante para a Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto da Argentina.

A campanha começa em 2005, mas antes disso já havia muito trabalho. A importância da campanha reside em ter reunido em uma só aliança nacional todas as expressões fragmentadas, pequenas e dispersas, de ativismos feministas em todo o território nacional.

Foi um trabalho de longo prazo. Todas as transformações para construir a cidadania plena para as mulheres e reagir à subordinação demandam muito tempo. Não é possível fazer isso de um dia para outro, porque tem a ver com a construção da democracia. Em geral, não é possível pensar as reivindicações feministas fora de um contexto democrático.

Em 2015, a campanha se associou ao movimento Ni Una Menos, que surge como resposta à violência machista. Rapidamente, incluímos o lema 'nem mais uma morta por aborto clandestino' e esse foi um dos nossos grandes acertos políticos. Essa associação rápida surgiu porque a experiência é longa. Fizemos manifestações imensas nos anos 2016, 2017 e 2018.

Temos um lema que cantamos nas manifestações que diz: 'Agora que estamos juntas, agora que sim nos veem, abaixo o patriarcado, que vai cair'. Passaram muitos anos até a chegada desse momento, em que estamos juntas e que nos veem."

"Em 1990, brasileiras queriam associar direito ao aborto à Lei do Ventre Livre"
Nina Brugo

Nina Brugo, feministas históricas da Argentina  - MONK Fotografía - MONK Fotografía
Nina Brugo, que se impressionou as propostas de brasileiras durante um encontro de mulheres para debater seus direitos
Imagem: MONK Fotografía

"Eu comecei a militar por volta de 1965, quando estudava Direito na Universidade Católica Argentina. Já naquela época, eu sabia que as mulheres abortavam e acompanhava amigas que precisavam abortar, não as condenava, mas não encarava como um direito. Para mim era uma questão pessoal e, mesmo dentro da militância católica, entendia - como São Tomás de Aquino - que nas primeiras semanas o aborto era aceitável.

Em 1980, eu me exilei, com meu marido e dois filhos pequenos. Primeiro, fomos a São Paulo, depois a Montreal, e, em seguida, México. Em 1982, comecei a dar aulas na Universidade de Veracruzana, e na conversa com outras companheiras as questões feministas começaram a surgir. Meu marido havia perdido três bibliotecas enquanto fugíamos da ditadura, então ele comprava livros sem parar e começou a me dar livros sobre feminismo de presente. Eu olhava meio de lado, mas com o tempo comecei a lê-los.

Em 1984, voltamos à Argentina, onde começava a organizar-se o primeiro Encontro Nacional de Mulheres, que aconteceu em 1986. Éramos mil mulheres de quase todo país, muitas estavam chegando do exílio, e as primeiras agrupações feministas também estavam presentes.

Foi aí que eu vi a potência das mulheres e pensei: se houver alguma mudança, de algum tipo, essa mudança vai vir das mulheres. E então a vida me presenteou com a possibilidade de ter ido aos 34 encontros que aconteceram desde então, até 2019, na cidade de La Plata, onde cerca de 500 mil mulheres se reuniram.

Em 1990, Dora Coledesky, uma das pioneiras na luta pelo aborto na Argentina, se aproximou de mim na fila de um refeitório e pediu meu apoio a um abaixo-assinado pelo direito ao aborto. Na hora, eu disse: 'direito? Não assino de jeito nenhum!'. Não me assustava a palavra aborto, me assustava a palavra direito.

Nesse mesmo encontro, fiquei muito impressionada com as companheiras brasileiras, que solicitaram a inclusão do dia 28 de setembro como o dia internacional pela descriminalização do aborto, em associação com a Lei de Ventre Livre (que determinou em 1871 que filhos de escravizadas nasceriam livres).

Aquilo me inquietou e, no final do encontro, procurei a Dora e assinei. Ficamos amigas e passei a militar pelo direito ao aborto ao lado dela."

"Eu me disponho a conversar com qualquer pessoa que queira falar comigo. Meu vício é divulgar direitos"
Nelly Minyersky

Nelly Minyersky - MONK Fotografía - MONK Fotografía
Nelly Minyersky, ao centro, usa o lenço verde símbolo da luta feminista pelo aborto
Imagem: MONK Fotografía


"A Argentina tem uma tradição de produzir união entre mulheres de diferentes setores em determinados momentos da história. Foi assim que surgiram, durante a última ditadura (1976-1983), os movimentos de Mães e Avós da Praça de Maio, por exemplo. Nem todas pertenciam aos mesmos setores políticos, algumas sequer militavam, mas se uniram para exigir notícias sobre o paradeiro de seus filhos e netos desaparecidos.

Depois da ditadura, os Encontros Nacionais de Mulheres passaram a acontecer todos os anos e foi aí que começamos a debater aborto. Em 2015, surge o movimento Ni Una Menos, que era uma manifestação contra feminicídios. De repente, convoca-se 100 mil pessoas às ruas sem ter uma infraestrutura, porque foi uma convocatória feita por um grupo de jornalistas.

Para mim, o fenômeno mais forte foi o debate legislativo de 2018, ainda que o projeto de lei tenha sido rejeitado pelo Senado. Nesse momento, abriu-se uma comporta, havia milhares de mulheres, jovens, velhas, trans, nas ruas de Buenos Aires. Depois disso, seguimos com atividades em diferentes âmbitos: escolas, universidades, lugares de trabalho. Coletivos de artistas, atrizes, médicas, advogadas, fotógrafas, jornalistas, de diferentes atividades, se pronunciaram a favor da legalização do aborto.

Além disso, o aborto era legal em casos de estupro ou risco à saúde da gestante existe desde 1921, mas nem a Justiça nem os profissionais de saúde reconheciam esse direito devidamente. Então também foi muito interessante ver redes de profissionais da saúde que, mesmo antes da legalização, se organizaram para garantir as interrupções legais da gestação e que adotaram uma política de redução de danos ao expandir e utilizar as causas de justificativa para o aborto legal nos termos que a OMS (Organização Mundial da Saúde) especifica, com uma perspectiva de saúde integral, que inclui a saúde mental, física e emocional.

Ninguém sai correndo para fazer um aborto porque é legal, assim como ninguém se divorcia porque é permitido. O discurso "pró-vida" oculta algo muito reacionário, que é o desejo de manter as mulheres como sujeitos incapazes. No fundo, o que ocultam - e às vezes nem tanto - é o desejo de um sistema fascista, com uma família piramidal e um Estado piramidal, que é a parte mais perigosa.

O que eu penso é que os direitos só são efetivos quando são difundidos. Por isso, me disponho a conversar com qualquer pessoa que queira falar comigo. Meu vício é divulgar direitos."