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Por que Recife foi o destino escolhido para fazer aborto de menina do ES

Hospital Universitário Cassiano Antônio Moraes, em Vitória (ES), local em que foi negada a realização do procedimento - Divulgação
Hospital Universitário Cassiano Antônio Moraes, em Vitória (ES), local em que foi negada a realização do procedimento Imagem: Divulgação

Carlos Madeiro

Colaboração para Universa

18/08/2020 04h00Atualizada em 18/08/2020 15h57

Resumo da notícia

  • Secretaria de Saúde do ES pediu ajuda ao Hospital das Clínicas de Uberlândia, depois de recusa de hospital ligado à Ufes
  • HC de Uberlândia afirmou que estava lotado e não poderia fazer o atendimento
  • O governo do Espírito Santo emitiu passagens para a criança e a acompanhante até Recife
  • O Cisam, no Recife, se tornou referência em aborto legal após caso de menina de 9 anos em 2009

Na manhã do dia 7 de agosto, o serviço de pediatria do Hospital Dr. Roberto Arnizaut Silvares, em São Mateus (a 214 de Vitória), fez o atendimento a uma menina de 10 anos grávida após ser vítima de um estupro pelo tio. A unidade acionou o Conselho Tutelar, que passou a conduzir o caso, que terminou com o aborto legal realizado a 1.630 km dali, no Recife.

De lá, ela foi encaminhada para o Hospital Maternidade de São Mateus, onde realizou exames. Foi quando o caso chegou às autoridades estaduais. Durante os 10 dias entre o primeiro atendimento e a finalização do procedimento, a criança passaria por quatro hospitais, duas viagens e risco de exposição.

Segundo o secretário de Saúde do Espírito Santo, Nésio Fernandes, no dia 10 o caso foi levado ao MP (Ministério Público) Estadual. No mesmo dia, a Promotoria de Justiça da Infância e Juventude solicitou na Justiça o direito ao aborto.

Ali começava uma primeira espera da criança —que estava sob medida protetiva. "No dia 12 de agosto, nós solicitamos informações ao município de São Mateus, que no dia 13 informou que a criança estava fazendo o pré-natal e que existia a opinião do obstetra de continuidade da gestação", conta Nésio.

Decisão judicial e mais espera

Na sexta-feira (14), a Justiça determinou então que a criança fosse submetida ao procedimento, respeitando sua vontade. Ela foi levada ao Hucam (Hospital Universitário Cassiano Antônio Moraes), ligado à Ufes (Universidade Federal do Espírito Santo), em Vitória, onde chegou por volta das 21h30. Ela passou 36 horas no local até que fosse definido o seu destino.

Segundo a superintendente do Hucam, Rita Checon, o plano inicial seria realizar o procedimento no local. Entretanto, após ser acolhida e avaliada pela equipe, exames apontaram que o caso era mais complexo que o previsto.
O diagnóstico feito por um exame de ultrassom apontou que era uma gestação de 22 semanas e quatro dias e o feto tinha um peso de 537 gramas. Após esse diagnóstico, a equipe se reuniu no sábado e tomou a decisão de não seguir com o processo no local.

"Baseado nos critérios do Ministério da Saúde, tomou-se a decisão de não realizar o abortamento, dado que, pelo protocolo para realização de abortamento humanizado —que existe desde 2005—, o aborto tem um limite de 20 a 22 semanas de gestação, e um peso fetal de até 500 gramas. Essa criança estava acima desse ponto de corte. Por isso, não tínhamos capacidade técnica para conduzir uma antecipação de parto, já que pelos dados não seria mais um abortamento", explica.

Segundo a equipe, a criança tinha diabetes gestacional, mas não estava em risco iminente.

Em busca de um local

Ainda no sábado à tarde, a Secretaria de Saúde foi informada da decisão e precisou buscar um local para o qual ela pudesse ser encaminhada o mais breve possível. Segundo o secretário de Saúde, o Espírito Santo não possui, nem na rede pública nem na particular, serviço de medicina fetal com capacidade de proceder em casos como o da criança. "Passamos então a buscar alternativas para garantia do cumprimento da decisão e do acesso da criança ao serviço", diz.

O primeiro local procurado foi o mais próximo: o Hospital das Clínicas de Uberlândia (MG). Entretanto, segundo a secretaria, o HC afirmou que estava lotado e não autorizou a transferência da criança. O segundo local da lista foi o Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam), ligado à UPE (Universidade de Pernambuco), no Recife, que é referência no estado para aborto legal.

O contato foi feito diretamente com o diretor da unidade, o obstetra Olímpio Moraes, no sábado à tarde. "O doutor Olímpio formalizou o aceite de transferência da paciente no sábado à noite. Daí nós agilizamos a emissão das passagens dela e da acompanhante", conta Nésio Fernandes.

A escolha do Recife

Um fato que chama a atenção nesse processo é a escolha de um estado tão distante como Pernambuco para receber a criança. Isso tem relação direta com o know-how desenvolvido pela unidade de saúde após outro caso de repercussão nacional, há 11 anos, quando uma criança de 9 anos interrompeu uma gravidez de gêmeos.

O caso fez com que o médico Olímpio Moraes fosse excomungado pela Igreja Católica.

Segundo a médica Carmelita Maia, que é legista e sanitarista, o Cisam se tornou referência após esse caso. "Eu fui a médica que atendi primeiramente aquela criança e a encaminhei para o procedimento. Ela também era vítima de violência. E no país existem redes feministas, e a gente [de Pernambuco] tem uma ligação forte com o Espírito Santo: eu vou muito lá dar palestras. E todos sabem desse fato de 2009, sugeriram nosso caso. Como temos vários números de WhatsApp em grupos com essa temática, ficou fácil o contato", afirma.

Benita Spinelli, coordenadora de enfermagem do Cisam, confirmou a Universa que o contato foi feito pelo governo ainda no sábado. "Nós fomos consultados e de pronto aceitamos esse grande desafio", conta.

"Somos um hospital referência em atendimento a mulheres vítimas de violência sexual e doméstica e aborto legal desde 1996. Somos um dos pioneiros, e acredito que nos escolheram pela nossa bagagem, história de atendimento, pelo compromisso com a vida das mulheres e pelo trabalho sério que fazemos", diz Benita.

A viagem

A viagem da criança aconteceu na manhã de domingo em voo comercial. Ela deveria ter sido mantida em sigilo absoluto para preservar a criança. Viajaram, além da criança, a avó e uma assistente social do estado.

Entretanto, as informações vazaram e levaram grupos à porta do hospital. Um grupo de pessoas ligadas a movimentos religiosos tentou invadir o Cisam e a polícia foi acionada para conter o tumulto gerado. O vazamento dos dados está sendo apurado pelo MP e pelo Husam.

A criança chegou no domingo ao hospital do Recife e teve iniciada a indução do abortamento por meio de medicações. Na manhã de ontem finalizou o procedimento, mas continua internada. Segundo a equipe médica, a criança apresenta boa recuperação e deve ter alta em breve.