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Sexo é bom, feminismo é do diabo: seminário reúne evangélicas contra trevas

Reprodução/Facebook
Imagem: Reprodução/Facebook

Camila Brandalise

De Universa

17/10/2019 04h00

Chego, no dia 4 de outubro, uma sexta-feira à noite, para o primeiro de três dias do seminário Mulheres do Reino de Deus, em uma igreja evangélica neopentecostal, no bairro do Belém, zona leste de São Paulo, que se propunha a combater "o avanço das trevas para destruir a imagem feminina". Sou recepcionada por uma mulher com um colete amarelo, da organização do evento, que para na minha frente, segura meus pulsos e pede a Deus que me ilumine. Dou boa noite, caminho para o salão e me sento em uma das 200 cadeiras para esperar a primeira palestra começar.

Minha formação é católica. Minha mãe, apesar de fervorosa do tipo que me abençoa com o sinal da cruz na testa e faz faxina com a TV ligada na Rede Vida, me deixava ir, quando criança, a cultos evangélicos com uma amiga luterana e a uma igreja neopentecostal com uma prima recém-convertida.

Não participei desse seminário para escrever sobre a fé das participantes. Mas para entender como igrejas neopentecostais, em constante crescimento no Brasil, enxergam o papel da mulher a partir da religião. Não são pensamentos restritos a poucas participantes de um seminário: segundo o Censo de 2010, mulheres são 55,7% dos 42 milhões de evangélicos do país. Pesquisas atestam que vivemos um momento de transição religiosa e uma projeção indica que, em 13 anos, o número de evangélicos no Brasil deve superar o de católicos. Dentro desse universo, há várias denominações que promovem eventos específicos para o público feminino, das tradicionais às mais modernas e que perpassam diferentes classes sociais.

No evento, vi cerca de 80 mulheres de uma média de idade entre 30 e 50 anos, a maioria branca, aparentemente de classe média. Nos três dias, vi três homens que cuidavam da portaria. Assisti a palestras de nove pastoras. Reconheci ideias reverberadas pelo governo do presidente Jair Bolsonaro. Percebi opressão, presenciei libertação. Ouvi que feminista está do lado do inferno e chorei quando disseram para pensar em alguém querido que morreu. Mas vou começar falando de sexo.

Sexo é bom e não é só para homens

"Nossa cultura é machista", diz uma das pastoras. "Diz que sexo é só para homens e que mulher é só para gerar filhos. Não é verdade." Estranhei. Em 20 anos de catolicismo, nunca ouvi a palavra sexo dentro da igreja. O eufemismo usado é o do "pecado original", que não está exatamente ligado a sexo, mas com todo o mito da maçã mordida cravou em mim a ideia de que sexo é errado por natureza.

Para a pastora, o erro não é fazer, mas negar. "A relação sexual é tão espiritual quanto orar e ler a Bíblia. Tinha uma época em que eu não queria fazer porque estava ferida, meu marido era alcoólatra. A gente não se amava. Passei pela libertação, fui curada. Nós fugimos das nossas obrigações. Eles [os maridos] ficam mais felizes [quando fazem sexo], para eles é muito importante." Uma mulher balança a cabeça em concordância.

Durante a oração, que funciona como um jogral, um dos pedidos é que Deus ajude as mulheres presentes a renunciar ao sexo oral e ao anal. "Pergunte ao Espírito Santo: 'Isso vai trazer vida?' São práticas pervertidas", diz a pastora. Ao notar meu silêncio durante a oração, uma mulher de colete amarelo se aproxima e, em voz baixa, diz que preciso repetir alto o que a pastora diz, assim como as outras mulheres, para juntas termos forças para combater o demônio.

"Maísa é feminista feroz e está do lado do inferno"

"A ideologia do feminismo está arraigada em nós", diz a mesma pastora que fala sobre sexo. "Faz a gente tratar a palavra de Deus como se fosse estúpida. Tratamos mal nossos maridos e filhos. Foi o diabo que colocou isso na nossa mente. Se o homem trai, a mulher quer fazer igual. Isso é ideologia feminista."

O feminismo é, na visão dela, uma luta contra homens e contra Deus. A ideia vai de encontro não apenas às teorias feministas, mas também a de grupos de feministas cristãs, inclusive evangélicas, que entendem que a defesa da liberdade feminina não se opõe à escolha de seguir Jesus. Diz a pastora: "A verdadeira liberdade está na ternura e no afeto".

A apresentadora Maísa Silva, de 17 anos, é citada por outra pastora, já na palestra seguinte. "Vi um outdoor dela na rua. Ela era uma criança tão fofinha, né? O que virou? Uma feminista feroz. Hoje está do lado do inferno."

"Perdoe a pessoa que te abusou"

Abusos sexuais na infância são citados constantemente nas palestras como sendo uma "prisão espiritual", um trauma que "marca a alma". O assunto é tratado com naturalidade: em várias falas as pastoras repetem que muitas mulheres e alguns homens as procuram para relatar que foram abusados. É uma violência comum entre brasileiras, independentemente da religião: uma menina de até 13 anos é estuprada a cada 15 minutos no país. Entre todas as idades, um estupro acontece a cada 8 minutos.

Durante uma oração de libertação no domingo de manhã, último dia do evento, uma pastora pede que as mulheres fechem os olhos para se libertarem do trauma. "Se você foi abusada sexualmente, perdoe a pessoa que fez isso com você", diz. De olhos fechados, ouço ao menos três mulheres chorando perto de mim. A pastora continua falando. Além do choro, há gritos de desespero. Algumas dizem em voz alta: "Eu te perdoo".

Mulheres se abraçam, choram no ombro uma da outra. Me pergunto em que outro lugar poderiam falar sobre isso, com tanta disposição de outras pessoas em ouvi-las e ajudá-las, sem ser ali.

Em dado momento da oração, ainda de olhos fechados, a pastora pede que as participantes pensem em alguém querido que morreu, mas a quem ainda se sentem presas. Nunca passei por uma morte traumática, mas duas pessoas da família, muito queridas, que tiveram câncer vêm à minha cabeça. A ideia de que tivessem morrido ou que venham a morrer no futuro me faz chorar a ponto de ser notada: abro os olhos ao sentir um lenço de papel sendo colocado na minha mão.

"Na ideologia de gênero, crianças são assexuadas"

Segundo a pastora que dá a palestra sobre o assunto, a ideologia de gênero é o discurso de que crianças não nascem com pênis nem com vagina. Quem defende a teoria estaria dizendo que as pessoas são "assexuadas". "O que está acontecendo atualmente é uma baguncinha. Ideologia de gênero é para destruir a família, precisamos orar contra isso", diz.

O termo é uma distorção dos estudos de gênero que, essencialmente, estudam modelos do que é ser homem e do que é ser mulher e afirmam que esses são papéis aprendidos e reproduzidos ao longo da vida. Por exemplo, dizer que rosa é cor de menina ou que mulheres são frágeis. O conceito de gênero é reconhecido entre esses estudiosos como sendo diferente do de sexo biológico, dividido entre masculino e feminino, pênis e vagina.

A pastora afirma que as crianças "aprendem a ser homem ou mulher com os pais", ideia que também está presente nos estudos de gênero. E ela mesma reforça os estereótipos apontados por pesquisadores: "Homem é razão, força, sexo, virilidade. Mulher é fragilidade, emoção, amor".

Por fim, diz ver no presidente Jair Bolsonaro o homem que Deus colocou [na presidência] para livrar o brasileiro da ideologia de gênero. "Louvo a Deus pela vida dele. Bolsonaro tem poréns, como todas as pessoas, mas está parando isso [o avanço da ideologia de gênero]."

Pecados: homicídio, estupro, homossexualismo

Em toda oração do tipo jogral, as fiéis repetem os pecados dos quais querem se libertar: de gula a homicídio, de estupro e abuso sexual a homossexualismo (palavra que é sinônimo de homossexualidade, mas foi substituída pelo movimento LGBT porque o sufixo "ismo" carrega a ideia de patologia).

Para ser escolhida para uma conversa reservada com uma pessoa que a livraria do sofrimento, é preciso preencher uma ficha de seis páginas com características da sua vida que a estariam mantendo em sofrimento. São 1.121 itens. Entre elas: tatuagens, dança do ventre, heavy metal, choro, timidez, tráfico de drogas, furtos, roubos, obesidade, compulsão para compras, práticas católicas, consumo de pirulito e refrigerante em festas de Cosme e Damião, consulta a horóscopo, gosto por filmes de terror, envolvimento com maçonaria, práticas da umbanda e do candomblé, abraço em árvore, alcoolismo, mentira, fornicação, prostituição, homossexualismo/lesbianismo, pornografia e masturbação.

"Fala para Deus que Deus fala com o cabeção"

Uma mulher sábia não deve reclamar nem brigar, diz uma das pastoras. Deve orar para Deus colocar o marido no caminho certo. A mulher é a coluna da relação, e o homem, o cabeça. A ideia não é novidade: o bispo Edir Macedo apareceu em um vídeo que rodou a internet, recentemente, falando exatamente isso.

A fala se baseia em passagens bíblicas, em Coríntios e Efésios, que diz que o marido é o cabeça da mulher, assim como Cristo é o cabeça da igreja. O homem, então, deve ser aquele que toma as decisões e resolve os problemas da casa. A mulher é a que dá suporte a essa cabeça, ou seja, a coluna. As pastoras se referem aos maridos como "cabeção".

"A gente briga com eles porque não fazem o que queremos. Fazemos bico. Mas quem é o chefe do esposo? Jesus. Então fale com ele", diz uma pastora. Outra reitera: "Fala para Deus que Deus fala com o cabeção".

Uma pastora de 80 anos, que nunca se casou, afirma que a mulher precisa se arrepender pelo marido, pelos pecados dele e orar. Conta a história de uma mulher que estava com problemas no casamento, o marido sumia por dias. Ela começou a rezar e jejuar. Um mês depois, a amante do marido estava tomando banho, teve uma convulsão e morreu. "Deus fez a sua parte. Amém, irmãs."

E afirma que, sim, a mulher deve se submeter ao marido. "Aí, vocês dizem: 'Vou ter que fazer isso [me submeter às ordens do homem]? Mas eu já mandei e desmandei nele'. Sim, vai."

"Deus odeia o divórcio. Se alguém fala que vai se divorciar, ore, jejue por aquela pessoa, para não ter divórcio." Lembro do relato que uma vítima de violência me concedeu para uma reportagem. Ela era espancada pelo marido, pediu ajuda na igreja e foi orientada a orar. Depois, o marido tentou matá-la, e ela se escondeu em um centro de atendimento a mulheres vítimas de violência doméstica.

"Não acredito nessas coisas da Globo", diz a pastora. "Mas vi que o assassinato de mulheres aumentou em 44%. Se for verdade, a sociedade está péssima." O dado é da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo e foi divulgado pelo canal Globo News e pelo site G1 em agosto. A informação se refere ao assassinato de mulheres no primeiro semestre de 2019 em comparação ao mesmo período de 2018. No ano passado, foram 1.206 casos em todo o país, sendo que em 88,8% deles as mulheres foram mortas por maridos ou ex-companheiros.

"Mulheres corajosas dizem: 'Vou me sujeitar'. Vocês estão entendendo, irmãs?"