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Aula prática de orgia, fila para cama gigante: o que vi em cruzeiro liberal

Mayumi Sato e o marido, João Fábio Silveira, passaram oito noites em um navio com outros 350 casais - Arquivo pessoal
Mayumi Sato e o marido, João Fábio Silveira, passaram oito noites em um navio com outros 350 casais Imagem: Arquivo pessoal

Colaboração para Universa, em São Paulo

15/01/2023 04h00

Quando programei minha viagem de fim de ano em um cruzeiro liberal achei que nada ali me surpreenderia. Trabalho há muitos anos com swing e fetiche: gerencio uma das maiores redes sociais de swing do mundo, vou às casas de troca de casais, a encontros de adeptos, a workshops e a festivais relacionados ao estilo de vida swinger.

Mas não poderia estar mais errada.

A proposta do Desire Cruise é oferecer uma experiência cinco estrelas a bordo de um navio que comporta cerca de 350 casais. Pessoas solteiras ou menores de 18 anos não podem participar. Pela primeira vez no Brasil, a embarcação saiu do Rio de Janeiro logo depois dos fogos de Réveillon e partiu em direção a Punta del Este e Montevidéu, no Uruguai, para em seguida finalizar a viagem em Buenos Aires, na Argentina. Oito noites nos esperavam a bordo.

A nudez era permitida, mas só em ambientes indicados para tal: no deck da piscina, jacuzzis e no andar superior. Fora dali, seria preciso cobrir - mas nem tanto - as partes íntimas para continuar circulando.

Sexo também tinha lugar certo para acontecer. Além das cabines dos hóspedes, dava para transar em um um ambiente chamado playroom, que é o equivalente ao darkroom das casas de swing - espaços também chamados de labirinto, já que em algumas casas ele é cheio de corredores, janelas e buracos para interação entre os ambientes.

Embarcados, meu marido e eu, demos de cara com meia dúzia de pessoas nuas. Naquela hora percebi que, apesar de ter feito uma mala pequena, ela podia ter sido ainda mais econômica. O deck da piscina era, de longe, o lugar mais frequentado durante o dia, e o dress code variava entre nudez total, pedaços minúsculos de tecido e pequenos acessórios que combinam com o tema da pool party do dia.

Algo que me chamou a atenção foi a variedade em termos de faixa etária. Apesar da maior parte das pessoas ter entre 45 e 55 anos, conhecemos vários casais na casa dos 30 ou ainda mais jovens do que isso. E muitos com bem mais idade. Foi interessante ver aquela diversidade de corpos lado a lado, andando e festejando nus. Pessoas gordas, magras, fitness, altas e baixas, tinha de tudo ali, convivendo nus e com naturalidade.

Os bares abertos 24h abastecem os casais com drinks sem parar, mas ninguém perde a linha, já que a ideia é chegar animado na festa temática da noite e ainda emendar uma visita ao playroom para uma curtição mais intensa. Com esse objetivo em mente, não é preciso pedir moderação, todos sabem que álcool em excesso não combina com as fantasias que eles querem realizar.

Mulheres no comando

Há uma regra de ouro em qualquer ambiente de swing, que todo novato precisa saber para ser bem recebido: as mulheres decidem o que querem, quem querem e até onde estão dispostas a ir. Sem o consentimento delas, nada acontece.

Show a bordo do cruzeiro liberal Desire - Divulgação - Divulgação
Show a bordo do cruzeiro liberal Desire
Imagem: Divulgação

No cruzeiro Desire, isso não poderia ser diferente, recebi pouquíssimos (e discretíssimos) flertes de homens, mas, entre as mulheres, a paquera rolava mais solta. Meu companheiro, inclusive, foi muito mais paquerado que eu e se surpreendeu com isso, já que está acostumado com a dinâmica padrão em que o homem precisa sempre dar o primeiro passo.

Ainda assim, mesmo para ele, poucas investidas eram realmente explícitas (tirando pedidos de selinho inesperados haha). As mulheres se insinuam de leve e esperam a reação do homem. Se elas sentem que ele não está no clima, o bate papo continua como se nada tivesse acontecido e vida que segue.

As conversas, aliás, são diferentes do que se pode imaginar (ou eu mesma imaginava), na maior parte do tempo, os casais conversam sobre assuntos mundanos: onde vivem, filhos, projetos e interesses em comum. Tempo de relacionamento também é um assunto popular, e a maior parte está casada há mais de uma, duas ou três décadas. Para o meio swinguer, maturidade nas relações matrimoniais é importante, até para a construção de uma certa autoridade, já que demonstra que não se trata de um casal aventureiro, mas de um casal que entende o estilo de vida liberal.

Muitas das pessoas com quem conversei, principalmente as mais velhas, relataram terem dificuldade em fazer novos amigos no dia a dia, seja por escassez de eventos sociais ou por não se identificarem com as pessoas com as quais convivem e tem a cabeça mais fechada, os baunilhas, como são chamados aqueles que não fazem parte do meio liberal, os coloridos.

Assim, o cruzeiro acaba se tornando a oportunidade ideal de conhecer pessoas interessantes e ampliar a sua rede de amigos. Não é incomum encontrar casais que viajam todos os anos tanto para os resorts liberais quanto para as diferentes rotas no mar apenas com esse objetivo.

Um casal de brasileiros com quem conversei ao final da viagem admitiu não ter feito troca de casais dessa vez, preferindo apenas transarem entre eles. Ainda assim, disseram terem vivido uma das melhores experiências das suas vidas por terem conhecido pessoas tão interessantes. Planejam voltar a uma nova rota, desta vez em Roma, programada para maio deste ano.

Mas vamos falar sobre sexo

Tirando o fato de estarem praticamente todos nus, quase dá para esquecer que o que reúne aqueles 350 casais são desejos, fetiches e fantasias. Quase! À medida em que os dias passam, as amizades brotam e as afinidades se estabelecem, os casais começam a ficar mais saidinhos. E parte disso é obra da engenhosa equipe de entretenimento, que oferece workshops sensuais diários: com temas que vão de "como apimentar a relação" a uma aula prática de orgia.

O time também incentiva a participação de todos nas festas diárias —com fantasias sexys que deixam pouco espaço para a imaginação— e organiza o playroom para tornar o ambiente atraente e convidativo.

Equipe de animadores do cruzeiro Desire - Divulgação - Divulgação
Equipe de animadores do cruzeiro Desire, para swinguers
Imagem: Divulgação

Fila de espera para camas gigantes

O local, que fica aberto apenas durante a noite e a madrugada, chega a lotar em algumas ocasiões, com casais na fila de espera para utilizar as camas gigantes espalhadas por ali. Na porta, algumas regras são expostas e é essencial estar ciente e de acordo com elas para se juntar aos demais.

Há normas sobre limpeza, descarte de preservativos, tempo razoável de utilização das camas e algumas mais específicas, que sugerem que você observe, se excite, mas tome cuidado para não se exceder e ficar encarando outros casais. Outra pede para que, em especial os homens, tenham parcimônia ao escolher para onde e por quanto tempo mirar.

Lá dentro, diferentemente dos darkrooms de casas de swing, a luz é baixa, mas tudo é visível, os tons de iluminação variam entre roxo, azul e rosa. Há difusores de essência espalhados por todos os cantos, com aromas sutis e agradáveis, desenvolvidas especialmente para o ambiente. Na porta, você já é recebido com água, preservativos, lubrificantes e toalhas.

O staff troca constantemente as roupas de cama, evitando que elas sejam compartilhadas entre diferentes casais. A experiência é realmente diferente, difícil de descrever, mas entre gemidos, respirações ofegantes e sussurros, o ar continua leve, fresco, mesmo com a excitação tomando conta.

Muitos casais preferem observar, outros fazem sexo sem troca, pelo prazer de compartilhar o mesmo ambiente e, claro, pelo exibicionismo. Há também aqueles que chegam em bando para compartilhar a mesma cama, outros que se conectam ali mesmo e pulam de um colchão a outro no meio da prática... as variações são inúmeras e ninguém é obrigado a nada, ninguém se sente vulnerável ou exposto.

Na saída, casais dividem os elevadores com olhares de cumplicidade e satisfação. Alguns vão emendar com mais sexo em suas cabines, outros voltam à pista de dança e há quem vá ao deck aproveitar o fim da festa sentindo a brisa do mar.

O que eu descobri no cruzeiro de swing

Agora que o cruzeiro acabou e eu tive a chance de refletir sobre os últimos dias, percebo que o que mais me surpreende não vem de fora, dos casais liberais, do cruzeiro em si ou do meio liberal, mas da minha facilidade em me apegar a estereótipos.

Talvez justamente por trabalhar há tantos anos no meio liberal, acabe sendo fácil para mim acreditar que há um padrão de pessoas que se interessam por swing ou práticas fetichistas. Mas não há.

Conviver com aqueles casais por oito noites me fez questionar cada uma das convicções que tinha a respeito desse estilo de vida. Hoje, estou mais consciente das minhas limitações, dos meus preconceitos e do trabalho diário que preciso fazer para não julgar o fetiche alheio e nunca tentar adivinhar quem é ou não é do meio liberal.

Ah, se eu pudesse apresentar a alguns daqueles casais a vocês...

É evidente que, naquele ambiente, há um recorte claro de classe e poder aquisitivo. Afinal, é para poucos o privilégio de pagar de 8 a 36 mil dólares por esse tipo de experiência. Mas é justamente por saber que há tanta diversidade naquele microcosmos e ainda mais lá fora, em casas de swing, em redes sociais online, entre pessoas que sequer podem ser dar ao luxo de expressarem os seus desejos (mas nem por isso desejam menos), que eu percebo que o mundo - também o do fetiche - é infinito e abundante.

E se eu puder deixar um convite a você (além do óbvio para que se divirta num cruzeiro como esse se puder e assim o desejar), ele é: nunca assuma que você sabe quem é baunilha ou colorido no seu convívio do dia a dia. Eu tenho certeza de que se certos assuntos não fossem tão encobertos pelo tabu, você também se surpreenderia!