Sobrevivi ao horror

Após viver em um campo de concentração, Ruth Tarasantchi retomou, no Brasil, a vida que o nazismo quis matar

Sabrina Abreu Colaboração para Universa, em São Paulo

O antissemitismo era forte na antiga Iugoslávia em 1941. Naquele ano, quando a Alemanha nazista ocupou a região, o médico Rudolf Sprung decidiu fugir ao lado da mulher, Paula, e das duas filhas, Ruth e Sheila. Não sem antes aconselhar outros familiares a fazerem o mesmo.

Aos 89 anos, a artista plástica naturalizada brasileira Ruth Sprung Tarasantchi, diretora de objetos de acervo do Museu Judaico de São Paulo, lembra o destino daqueles que não acreditaram nos alertas de Rudolf, mesmo depois que o pai dele foi preso e torturado pelos ustashas, fascistas locais que apoiavam os alemães.

Dois primos, companheiros de brincadeiras da sua infância, foram assassinados no holocausto. Não se sabe o destino exato das crianças, mas a mãe deles foi levada para Jasenovac, um campo de concentração de onde nunca saiu.

Sem uma sinagoga e com apenas poucas dezenas de judeus, a diminuta comunidade judaica de sua cidade natal, Bugojno, foi dizimada, com todos os homens assassinados e jogados numa vala comum apenas uma semana após Ruth e sua família se mudarem para Split, cidade iugoslava dominada por italianos. Não demorou até a família ser aprisionada e transportada para a Itália, onde foi confinada por quatro anos em Ferramonti, um dos 15 campos de concentração instituídos por Benito Mussolini.

Lembrança: foto da família Sprung mostra Ruth (ao centro) com a irmã, Sheila, a mãe, Paula, e o pai, Rudolf

Lembrança: foto da família Sprung mostra Ruth (ao centro) com a irmã, Sheila, a mãe, Paula, e o pai, Rudolf

Ruth nasceu em 25 de outubro de 1933, mesmo ano em que Hitler ascendeu ao poder na Alemanha. Suas lembranças até os 7 anos incluem piqueniques no Rio Vrbas, o gosto dos doces de ameixa e cereja, a imagem do gramado do quintal da casa da família, com pinheiro no centro, e a amizade de sua família judia com muçulmanos e cristãos, até a guerra começar de repente. "Foi quando eles deixarm de ser nossos amigos."

Décadas depois, já no Brasil, Ruth passou a contar a história de seus parentes e os anos de Bugojno em suas gravuras. Os desenhos dão contornos tanto aos bosques onde brincava com as amigas quanto à câmara de tortura em que o avô esteve e ao alicate com que arrancaram suas unhas dos pés e das mãos. Da cidade em que nasceu, no entanto, não tem mais notícia. Vive só em sua arte e imaginação. "Deus me livre de visitar aquele lugar."

À esquerda, pertences de Ruth que fazem parte do Museu Judaico de São Paulo; à direita, fotos e reportagens da época em que a família foi libertada

À esquerda, pertences de Ruth que fazem parte do Museu Judaico de São Paulo; à direita, fotos e reportagens da época em que a família foi libertada

Sorte na vida

"Eu tive sorte", repete Ruth sete vezes ao longo de seu testemunho, apesar de ter sido arrancada da terra natal, passado fome e perdido a liberdade. De acordo com o Yad VaShem, o Museu do Holocausto de Jerusalém, "Ferramonti nunca foi um campo de concentração como aqueles que os nazistas administraram". Lá, a relação entre os prisioneiros e os funcionários era considerada "pacífica", não havia trabalho forçado, tortura ou execução. Apenas privação de liberdade e racionamento de comida —daí talvez o uso surpreendente da palavra "sorte" para uma sobrevivente do genocídio de milhões de judeus.

As lembranças dessa época não são vívidas como as que guarda da infância anterior à prisão — coloridas, com cheiros e sabores. Dos anos no campo de concentração só guarda a sensação de viver "uma espera infinita".

A menina judia chegou ao fim da guerra com pai, mãe e irmã, além dos avós paternos e maternos, vivos. Expropriados e famintos, mas vivos. "Só importava estarmos em família", resume. Depois de os soldados ingleses libertarem Ferramonti, em 1945, começou a nova peregrinação dos Sprung, passando pelos campos de refugiados nas cidades italianas de Bari, Palermo, Roma e Gênova, até chegar ao Brasil.

Roma significou o encontro com a arte. Com o pai, ela visitou incontáveis museus e igrejas na cidade e no Vaticano, tomando gosto por copiar obras de grandes artistas, como Michelangelo. Com as filhas fluentes em italiano e a vida sendo reorganizada após abrirem um laboratório farmacêutico, a família pretendia permanecer no país.

Mas outro conflito impedia os Sprung de viver em liberdade. A Itália disputava a região de Trieste com a Iugoslávia, o que começou a se traduzir em dificuldades impostas aos refugiados. "Tínhamos perdido nossa nacionalidade durante a guerra, éramos apátridas, mas, para os italianos, de repente éramos iugoslavos e tínhamos que partir mais uma vez."

O pai buscou refúgio nos Estados Unidos e na Austrália, encontrando sempre portas fechadas. Até que uma consulesa brasileira facilitou a ida do médico, com mulher e filhas, para o Brasil —Ruth tinha 13 anos.

Depois de rápida passagem de navio pelo Rio de Janeiro e por Santos, São Paulo foi uma mistura de novidade encantadora e persistência de velhos medos. Ruth relembra ter amado o clima, a paisagem e a comida, ao mesmo tempo em que continuava a ter vergonha de sua situação de apátrida. "As pessoas pensavam que eu era italiana, e eu deixava, porque tinha vergonha de não ter pátria nenhuma." Instruída pelos pais, traumatizados pela perseguição, ela também evitava dizer que era judia. "Eu me sentia uma covarde fazendo isso", lembra.

Mas o antissemitismo a encontrou também no Brasil. Houve episódios tanto com o marido de uma professora, nos anos do colégio, quanto durante a faculdade de medicina, em Sorocaba (SP), em que um professor a tratava especialmente mal por ser judia.

A atitude do professor foi um dos motivos para Ruth desistir de ser médica, o que deixou sua mãe desolada. Além de ser uma profissão de alto status social, foi a medicina exercida por seu pai que ajudou a família diversas vezes a conseguir sobreviver durante a guerra. Outro motivo para a desistência foi falta de aptidão: a jovem, ainda apaixonada por arte como nos dias em Roma, não se via trabalhando num hospital.

Em 1955, Ruth se casou com o também médico Jacob Tarasantchi. Foi, segundo ela, um casamento de igual para igual, incomum para aquele tempo. A união durou até 1997, quando ele morreu. "A maioria das minhas amigas não continuou a estudar depois de casar e não trabalhava fora, mas comigo foi diferente, e meu marido tinha orgulho disso." Foi ao lado de Jacob que ela se tornou pesquisadora de arte e artista com mestrado e doutorado pela USP (Universidade de São Paulo). "De tanto visitar museus e casas de colecionadores comigo, ele acabou por se tornar um expert também", diverte-se.

Primeiro apaixonada pelas paisagens e paisagistas brasileiros, como pesquisadora e artista, Ruth foi, aos poucos, refazendo sua trajetória e a de sua família durante a Segunda Guerra (1939-1945) por meio de seus desenhos. Em 2019, lançou o livro "A História de Ruth" (ed. Cultura Acadêmica), compilando gravuras e memórias.

Ruth com a maleta da época em que fugiu com a família para a Itália: memória viva

Ruth com a maleta da época em que fugiu com a família para a Itália: memória viva

Antissemitismo está no mais alto patamar desde a Segunda Guerra

Ela vê seu testemunho como uma forma de resistir ao antissemitismo, que não acabou com o fim do Terceiro Reich. De acordo com Anti-Defamation League (liga antidifamação), organização que monitora o antissemitismo no mundo, discursos e atos de ódio contra os judeus estão no mais alto patamar na Europa e nos Estados Unidos desde a Segunda Guerra. "Fico amargurada, fico desesperada", confessa.

Seja por meio do restauro de peças, pelo estudo de pintores mestres dos séculos 19 e 20 ou pelas obras testemunhais, a preservação da história tem um lugar central na vida de Ruth. Foi por isso que ela se dedicou por 20 anos à criação do Museu Judaico de São Paulo, inaugurado em 2021. Uma resposta definitiva a todas as perguntas das quais tentou se esquivar, na adolescência e juventude, quando questionada sobre ser judia.

Mãe de dois filhos já casados, Ruth usava o quarto de um deles para armazenar objetos do acervo incipiente, no começo dos anos 2000. Para o Museu, Ruth doou seu acervo pessoal, incluindo um diário, objetos de uso pessoal da casa de seus pais e avós, além de uma bonequinha que sua mãe lhe deu, durante os anos de fuga, e para a qual costurou roupinhas feitas com retalhos e restos de linha de tricô. "No dia em que dei essa boneca, cheguei em casa e tive febre. Foi como abrir mão de um pedaço da minha vida", relembra.

Gravura desenhada por Ruth destaca a maleta que ela usou par guardar seus pertences, do campo de concentração até o Brasil

Gravura desenhada por Ruth destaca a maleta que ela usou par guardar seus pertences, do campo de concentração até o Brasil

Um item, contudo, permaneceu em sua casa. "Não tive coragem de doar a maletinha de vime com que viajei durante aqueles anos todos, da Iugoslávia para a Itália, até chegar no Brasil". Numa gravura que mostra o embarque no navio que levou os judeus prisioneiros para seu destino na Itália, é possível ver a mala quadrada na mão de uma menina que caminha entre pessoas que parecem desnorteadas.

Orgulhosamente brasileira desde que conquistou a nacionalidade, Ruth fala português perfeitamente. "Só os motoristas de Uber reparam que tenho sotaque, fico para morrer", fala, em meio a uma risada. Em sua casa no Paraíso, em São Paulo, comida e arte brasileira mostram o quão adaptada ela é ao país que a acolheu. Na sala, porém, sobre uma poltrona, está a maleta de vime, testemunha dos dias em que ela ainda era criança e não entendia o significado da guerra e das sucessivas mudanças a que sua família era submetida.

A maleta é um lembrete, como também é a frase do filósofo Soren Kierkegaard no prólogo do livro escrito por Ruth: "A vida só pode ser compreendida olhando-se para trás, mas só pode ser vivida olhando-se para frente".

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