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'Tornozeleira deu choque no parto': a vida de mães em prisão domiciliar

Fernanda* usava tornozeleira eletrônica quando deu à luz: "Achei que fosse morrer" - iStock
Fernanda* usava tornozeleira eletrônica quando deu à luz: 'Achei que fosse morrer" Imagem: iStock

Joana Suarez

Revista AzMina

09/05/2023 04h00

Mulheres que cumprem pena em casa enfrentam dificuldades para sustentar os filhos e atender demandas básicas da maternidade.

Em prisão domiciliar, Fernanda* já sentia o quanto era desafiador ser mãe de dois filhos pequenos. Quando engravidou da terceira filha, levou um choque durante a cesária. Não foi no sentido figurativo, a corrente elétrica realmente invadiu seu corpo. Fernanda entrou em trabalho de parto e foi para o hospital com uma tornozeleira eletrônica vibrando em sua perna por sair de casa sem avisar. Os profissionais de saúde não quiseram tirar o equipamento, mesmo com o risco de ela sofrer a descarga no centro cirúrgico. Tiraram o seu brinco, o piercing, mas não o aparelho elétrico.

"Pedi pelo amor de Deus, disse que eu me responsabilizava, mas tinham umas 10 pessoas lá e ninguém quis tirar a tornozeleira, porque ficaram com medo. Tive um susto danado com aquele choque vindo de baixo pra cima, achei que ia morrer, e comecei a vomitar", recorda com horror.

A decisão judicial que lhe concedeu prisão domiciliar dizia que ela não poderia se afastar mais de 500 metros de casa. Mas o juiz não considerou que crianças e uma gestação têm imprevistos, tampouco que ela não teria como cuidar dos filhos assim, sem poder trabalhar para sustentá-los.

No primeiro semestre do ano passado, havia cerca de 16 mil mulheres no Brasil em prisão domiciliar, conforme os últimos dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen). Sabe-se que a maioria das mulheres presas no país (74%) é mãe, mas não há informações sobre a idade dos filhos e filhas, nem um recorte sobre as que estão cumprindo pena em casa.

A medida alternativa ao encarceramento tem, entre seus objetivos, o de proteger a primeira infância, preservando o cuidado materno. No entanto, o excesso de limitações da prisão domiciliar - a depender da visão do juiz ou juíza do caso - pode seguir prejudicando o exercício da maternidade.

A reportagem da revista AzMina ouviu Fernanda*, em Pernambuco, Marisa*, em Minas Gerais, e Fabíola*, em São Paulo. Mulheres que têm mais de um filho e pouca ou nenhuma rede de apoio e afeto. Mães solo, sem moradia própria, sem trabalho e sem renda. Com isso, a alimentação dos filhos fica comprometida. Sair para fazer uma simples compra de supermercado é um problema, assim como levar a criança à escola ou a uma unidade de saúde numa emergência à noite.

Muitos juízes não consideram a necessidade de algumas flexibilidades, como, por exemplo, a festinha da escola ou aquele dia de homenagens à família, que caem no fim de semana. Mães e filhos não podem participar e, mais uma vez, ficam à margem da vida social.

"Para conseguirmos que a mãe (em prisão domiciliar) pudesse levar e pegar a filha menor na escola precisou todo um esforço da defensoria", exemplificou Marília Lima Milfont, defensora pública federal, sobre uma ex-assistida do órgão. "Depois, teve uma feira de ciências em um final de semana, em que foi outro estresse para conseguirmos a autorização judicial prévia."

Mais vulneráveis do que antes

As condições de vida das mães em cumprimento de prisão domiciliar, diante de uma série de restrições impostas e da falta de políticas sociais, de emprego e renda, podem agravar as vulnerabilidades já vivenciadas por elas antes da prisão. Esse achado está na pesquisa do Instituto Terra Trabalho e Cidadania (ITTC), que se debruça sobre o tema há uma década.

Em 2022, o ITTC analisou e entrevistou cinco mulheres jovens (de 19 a 35 anos), mães, pobres, a maioria com baixa escolaridade. Um relatório de 106 páginas descreve "os desafios da aplicação da prisão domiciliar para o pleno exercício da maternidade e a proteção à infância".

"Antes eu trabalhava e a gente comia uma comida melhor, comprava bastante roupa para ele (?) agora não poder sair daqui para trabalhar, muita coisa piorou", disse uma das entrevistadas no estudo. O instituto aponta que a insegurança alimentar e a instabilidade financeira são agravadas pelo aprisionamento e pela dificuldade ao acesso a direitos básicos.

"Observamos que as histórias se repetem e, muitas vezes, justamente o fato de serem mães e estarem em busca de sua subsistência material e de seus filhos, levam para o cometimento de condutas consideradas ilícitas", indica o relatório.

O sistema de justiça e segurança e as secretarias estaduais penitenciárias, em geral, não se articulam com prefeituras e órgãos de assistência para o atendimento dessas mulheres. Também não há regulamentação sobre o cumprimento da prisão domiciliar, tornando as decisões judiciais insuficientes diante das demandas das mães, que muitas vezes estão sós.

Camadas de solidão

Nenhum dos três filhos de Fernanda* foi planejado, e são de pais diferentes - um morreu e os outros são ausentes. O menino mais velho, de 6 anos, sofre com retardo mental e transtornos do desenvolvimento neuromotor. Segundo ela, o filho ainda não anda e não fala direito em consequência de negligência médica no parto. Sozinha, filha única de pais falecidos, essa mãe de 25 anos, conta apenas com alguns amigos: "a família que Deus manda pra gente".

Foi uma amiga que ficou com os filhos dela quando, após uma denúncia anônima, oito policiais vestidos de preto entraram na sua casa quebrando e bagunçando tudo, com o menino na cadeira de rodas gritando e chorando. Mandaram tirar a bebê do berço para revirar o móvel e levaram Fernanda embora, pois acharam drogas de seu ex-companheiro, que depois assumiu a posse. Mas ela seguiu com a pena, que cumpre em prisão domiciliar, na esperança de ser inocentada na sentença final.

O Benefício de Prestação Continuada (BPC) que recebia do governo pelo filho com deficiência foi bloqueado, pois o sistema identificava que Fernanda estava na prisão, e não em domicílio. Com a tornozeleira eletrônica, só conseguia trabalho quando pessoas conhecidas topavam contratá-la para uma faxina, pois o equipamento também desperta preconceito, medo e julgamentos. Isso quando não é motivo para ela levar "baculejos" dos policiais. "Ninguém olha pra minha cara, olha direto o pé. Para o mundo eu não presto, e ninguém quer saber a minha versão", questiona Fernanda.

Só depois de dois meses sem o mínimo para sobreviver, ela conseguiu voltar a receber o salário mínimo mensal do BPC. "Foi um aperreio grande porque eu não tinha nada. E criança não quer saber, quer comer e pronto", relembra.

Medo de voltar para a cadeia

Fernanda usava tornozeleira fazia quatro anos quando a entrevistei, e seu processo estava parado. "O monitoramento é para quem ameaça fugir sem cumprir a pena, não faz sentido alguém usar por muito tempo se está obedecendo", explicou a bacharel em direito Clarissa Torres, uma das fundadoras do coletivo Liberta Elas em Pernambuco.

Mas, na prática, com o equipamento no tornozelo, ou Fernanda desobedecia às regras, ou a família passava fome. Ela não podia trabalhar, ir à farmácia nem ao supermercado. Mesmo ao socorrer a criança, que tem algumas crises convulsivas, ela entende que precisa avisar à Justiça. Fernanda faz parte de um grupo de mulheres que convive diariamente com o medo, arriscando a volta para a prisão por atenderem necessidades primárias da maternidade, sobretudo quando não contam com nenhum suporte.

As fronteiras da prisão domiciliar não são bem esclarecidas para essas mulheres. A linguagem da Justiça e da burocracia, com todas as suas siglas, não ajuda. E a determinação de que fiquem em casa, na opinião dos pesquisadores do ITTC, revela a falta de compreensão do Marco Legal da Primeira Infância. "Restringir a atividade de uma mãe ao ambiente doméstico limita o desenvolvimento cognitivo, motor, social e cultural da criança e dos vínculos familiares", defende o artigo do instituto.

Sempre que Fernanda precisa checar o andamento de seu processo - que passou a ser digital -, ela se desespera. "Quando tá carregando a página eu já fico rezando pra não ter ordem de recolhimento." Na última audiência, a juíza lhe perguntou sobre seus desrespeitos às regras da prisão domiciliar: "não vou mentir não, doutora, eu tenho muita violação, porque não vou ficar passando fome dentro de casa com os meninos."

A máscara protegeu da polícia

Para Fabíola*, de 38 anos, o mais difícil da maternidade nessas condições foi ter que ir às consultas de pré-natal com medo de ser presa, de alguém denunciá-la. "O juiz te restringe de um monte de coisa. Se fosse pela justiça, eu não estaria sendo mãe."

Ironicamente, o que favoreceu Fabíola, nesse período, foi o uso da máscara durante a pandemia de Covid-19. "Um vírus que veio e acabou me camuflando um pouco, porque tenho medo de ser presa na rua e deixar meus filhos em casa."

Ela afirma que saiu do presídio com R$ 23 mil de multa penal determinada pelo juiz. "Se eu não saio pra fazer uma faxina, se eu não topo qualquer trabalho, não tenho o alimento, não pago meu aluguel."

A filha de Fabíola estava com 17 anos, foi a pessoa autorizada a buscar o irmão mais novo, de 3 anos, na escola enquanto a mãe cumpria a pena. Mais tarde, a jovem aprendeu o ofício de manicure e passou a ajudar com as despesas atendendo clientes em casa. A mãe faz planos de um futuro diferente para o caçula: "Espero ainda dar um estudo pra ele ser o doutor da família."

*Os nomes foram alterados a pedido das entrevistadas.

Reportagem publicada originalmente em https://azmina.com.br/reportagens/maes-em-prisao-domiciliar-excesso-de-restricoes/