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Na pandemia, Câmara recebe 12 projetos de lei sobre violência contra mulher

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Imagem: AzMina

Letícia Ferreira e Bárbara Libório

09/07/2020 04h00

Entre os dias 17 de março e 18 de maio foram propostos na Câmara dos Deputados 1.261 projetos de lei (PL) com as palavras-chave "coronavírus" e "Covid-19", segundo levantamento do Elas no Congresso, plataforma de monitoramento legislativo da Revista AzMina. Entre eles, 24 projetos de lei tinham palavras-chaves relacionadas a gênero e aos direitos das mulheres em sua ementa — representando 2% dos projetos de lei propostos por deputados nesse período. A maioria deles propõe medidas de combate à violência contra a mulher.

O tema, que ganhou destaque em meio a pandemia, com o aumento dos casos de feminicídio e violência doméstica, foi uma preocupação principalmente das deputadas - na produção parlamentar delas, o tema apareceu com mais frequência que na produção parlamentar deles.

Entre março e abril deste ano, os casos de feminicídio cresceram 22% em comparação ao mesmo período do ano passado, em 12 estados brasileiros, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. A mesma publicação identificou que as denúncias de violência contra a mulher por telefone aumentaram 17,9% no mesmo período. Com todos os estados brasileiros em quarentena no mês de abril, a procura por esse atendimento no 180 (número para denúncias de violência doméstica do governo federal) cresceu 37,6%.

"A atuação diferenciada das deputadas mulheres tem muito mais a ver com uma experiência social do que com a natureza biológica", explica a mestre em ciência política Beatriz Rodrigues Sanchez. "O fato de as mulheres serem violentadas, terem essa experiência no seu dia a dia, faz com que, uma vez que elas entrem em espaços como a política, que elas pautam esses temas."

Entre os projetos sobre o combate à violência contra a mulher na pandemia, o PL 1291/2020 é o que está mais avançado: foi aprovado na Câmara e no Senado e aguarda sanção do presidente Jair Bolsonaro. O projeto determina a manutenção do atendimento presencial em serviços especializados, como as delegacias da mulher, para casos de estupro e feminicídio, e estabelece orientações para os atendimentos remotos em outros casos de violência, e tem autoria de várias deputadas e é encabeçado por Maria do Rosário (PT-RS).

Outro PL, o 1444/2020, de autoria de Alice Portugal (PCdoB/BA), fala sobre medidas emergenciais de proteção à mulher durante a pandemia, como a destinação de recursos para assegurar o funcionamento de serviços como as casas abrigo. O projeto está para ser votado pelos deputados, mas vem enfrentando resistência da bancada evangélica na Câmara. O texto final da relatora Natália Bonavides (PT-RN), ao garantir o pleno funcionamento dos serviços essenciais de saúde para mulheres e meninas, "incluindo serviços de saúde sexual e reprodutiva", foi chamado de "abortista".

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Também de autoria de mulheres há o PL 2477/20, que determina que os serviços domésticos não sejam incluídos entre as atividades essenciais durante a pandemia. Há pressão popular para que ele seja votado o quanto antes pelos deputados, para proteger os direitos das trabalhadoras domésticas. Segundo a Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal), 727 mil trabalhadoras do serviço doméstico ficaram desempregadas ou perderam horas de trabalho devido às quarentenas.

A pequena quantidade de projetos que tratam diretamente sobre gênero, segundo Beatriz, não significa necessariamente que os direitos das mulheres não estão em pauta, mas a questão é que não estão sendo olhados com o recorte apropriado e podem estar em risco. "A pauta de gênero é transversal, tudo tem gênero. Mesmo que não esteja explícito no texto da lei, existirão impactos diferentes sobre as mulheres, sobre os homens. Se a gente não olha com uma perspectiva feminista e antirracista para diferentes temas, vamos deixar de lado muitas pessoas e muitas formas de desigualdade."

Na pandemia, essa necessidade fica mais evidente, avalia Renata Teixeira Jardim, coordenadora de programa da Themis - Gênero, Justiça e Direitos Humanos, que acompanha a tramitação de projetos de lei.

"As mulheres são as mais afetadas nesse período, seja por conta do fechamento das escolas, ou porque elas estão em lugares mais precarizados no mercado de trabalho. São elas que estão na linha de frente da resposta do coronavírus, são elas a grande categoria na área da saúde. Olhar a realidade dessas mulheres e pensar em políticas públicas para a necessidade delas é uma forma de garantir que elas passem pela pandemia com segurança e dignidade".

Mas Renata observa que o governo federal tem dificuldades para garantir os direitos dessa população, principalmente as mulheres negras e periféricas, as mais atingidas pela falta de políticas públicas. O apoio às mulheres passa, também, por outras estratégicas. "Uma discussão sobre distribuição de tarefas domésticas. Os homens também precisam se envolver no trabalho com as crianças e com a casa".

Já na criação de projetos de maneira geral, economia e saúde foram as principais frentes de trabalho da Câmara durante a pandemia do novo coronavírus, tanto entre homens, quanto mulheres, mas elas se preocuparam mais com as áreas de saúde, violência contra a mulher, educação, trabalho e cultura.

Do total de projetos protocolados por parlamentares mulheres, 16,3% foram sobre saúde, enquanto entre os projetos propostos por homens o percentual foi de 12,4%. Em violência e cultura a diferença é ainda mais significativa. Entre os projetos de autoria masculina, 0,6% falavam sobre o combate à violência contra mulher, enquanto 2,5% dos projetos de mulheres falavam sobre esse tema. Na cultura, a diferença é de 1,4% entre os projetos de autoria feminina para 0,7% dos de autoria masculina.

Em uma perspectiva histórica, as mulheres têm ação majoritária em comissões das áreas do cuidado, o que reforça a relação das congressistas com esses temas, segundo a doutora em sociologia pela Universidade de Brasília (UnB), Débora Messenger. Mas elas têm dificuldades estruturais na política de protagonizar, além dos projetos de lei, espaços de decisão sobre assuntos que fogem da área do cuidado, como a economia e a administração pública.

E isso começa nos partidos. "Quem decide quais parlamentares vão ocupar as comissões do Congresso são as legendas partidárias. Eles acabam reproduzindo a divisão sexual do trabalho que existe na sociedade na divisão do trabalho legislativo também. Uma reprodução de desigualdades", afirma Beatriz Rodrigues, que estudou a bancada feminina no Congresso.

Desde a última eleição, a participação das mulheres cresceu no Congresso. Elas eram 9% dos deputados e senadores, e atualmente são 15%: 77 deputadas e 12 senadoras. Esse aumento é resultado também de um maior repasse de verbas para a campanha delas: 2018 foi a primeira eleição em que os partidos foram obrigados a repassar 30% da sua verba de campanha para candidaturas femininas.

Mas a maior participação feminina no Congresso não significa que as parlamentares defendam pautas sobre os direitos das mulheres. "Fazendo um recorte em termos partidários e ideológicos, vemos que as que mais se elegeram foram as mulheres de direita, proporcionalmente", diz Débora.

Essas parlamentares geralmente protagonizam discussões antifeministas, porém convergem em alguns assuntos universais da bancada feminina, quando eles não contrariam suas posições políticas, o interesse dos seus partidos e suas convicções religiosas. Um exemplo é o tema da violência contra a mulher.

E essa é uma discussão delicada para a política. Enquanto existem reivindicações por mais participação feminina, e de outros grupos sociais que estão longe dos espaços de decisão, no caso das mulheres, não existe uma relação direta entre a representação e a defesa de direitos.

Débora acredita que falta um olhar de fora para dentro, no desejo do eleitorado, para entender essa questão. "É importante também rever qual é a expectativa do eleitorado para com as mulheres. Elas são eleitas porque o eleitorado espera um determinado posicionamento delas, eles se veem representados por essas mulheres, que têm uma perspectiva de cuidado sobre a mulher, uma agenda antifeminista."

Muitos PLs, pouca aprovação

Propor um alto número de projetos não quer dizer necessariamente que haja qualidade do trabalho legislativo, avalia a socióloga Débora. O que justifica a quantidade de PLs protocolados para ela é a vontade dos parlamentares de "mostrar serviço" para o seu eleitorado e sua pouca experiência.

Tanto que desde a redemocratização, o número de projetos aprovados pelo Congresso é baixo em relação ao número de propostas. Entre Câmara e Senado, o Congresso Nacional aprovou 36 projetos em 2019. "Boa parte do funcionamento do Legislativo está relacionado ao Executivo, que manda muita coisa para ser analisada pelo Congresso, e a produção própria da casa fica em segundo plano, enquanto o Legislativo precisa se pronunciar sobre medidas provisórias e projetos que o governo executivo apresenta", explica Débora.

"Grande parte do Legislativo é novato, sabe pouco de como funciona o próprio poder, está aprendendo. Quem conhece o processo legislativo tem uma vantagem enorme", diz. Na Câmara Federal, a renovação parlamentar foi de 52% na última eleição, maior índice de renovação em 20 anos, segundo o Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap).

Inovação em outros países

Na América Latina, também estão sendo observadas movimentações políticas para o enfrentamento à Covid-19 encabeçadas por mulheres políticas. No Chile, por exemplo, deputadas e senadoras pró-governo e de oposição se uniram e propuseram um projeto de lei para estender a licença-maternidade até a suspensão do estado de emergência constitucional e outro para garantir o pagamento de pensão alimentícia quando o trabalhador estiver sujeito à suspensão temporária do contrato.

Na Argentina, a construção da Renda Emergencial Familiar, para compensar pessoas e famílias afetadas na crise sanitária atual, tem recorte de gênero, assim como no Brasil - lá, as mulheres têm preferência no recebimento do benefício. Esse esforço foi possível graças à articulação interministerial do grupo #MujeresGobernando que junta mais de 200 mulheres servidoras públicas no Executivo Nacional.

No México, a deputada Martha Tangle Martínez foi uma das responsáveis por uma petição ao presidente da República pelo combate à violência contra a mulher, "Sr. Presidente: A violência contra as mulheres é mais letal que o Covid-19", divulgada com a hashtag #NosotrasTenemosOutrosDatos. Martha vem ainda, desde abril, coordenando uma série de encontros virtuais, abertos à toda população, que abordam temas como "A economia das mulheres frente à emergência sanitária" e "A violência contra mulheres e meninas: a outra pandemia".

O tema da violência de gênero percorre todos os países. Na Colômbia, em Bogotá, mulheres poderão recorrer a uma rede de mais de 600 estabelecimentos de comércio local para denunciar casos de violência doméstica. Diana Rodríguez, Secretária da Mulher, articulou esta iniciativa entre a Federação Nacional dos Comerciantes, supermercados, farmácias e a prefeitura.

Os dados são parte de um mapeamento realizado no último mês pelo Instituto Update, em parceria com a Revista AzMina e outras organizações de Brasil, Chile e Argentina, que identificou uma série de ações de enfrentamento ao Covid-19 que mulheres políticas latino-americanas estão encabeçando em diferentes países. O grupo se debruçou sobre cinco países principais (Argentina, Brasil, Chile, Colômbia e México) para identificar ações pontuais de algumas mulheres que estão na linha de frente destes países como vereadoras, deputadas, senadoras e governadoras.

O texto completo com todas as iniciativas mapeadas por Instituto Update, Think Olga, Legisla Brasil, ComunidadMujer, Coletiva Conecta, Pensata, Democracia en Red e Revista AzMina estão compilados.

* Essa reportagem foi originalmente publicada pela Revista AzMina