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Tatiana Vasconcellos

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Deputadas sobre corte de verba de Bolsonaro: 'Mulher nunca foi prioridade'

Deputados em plenário: pautas femininas podem avançar, mas é preciso verba -  O Antagonista
Deputados em plenário: pautas femininas podem avançar, mas é preciso verba Imagem: O Antagonista

Colunista de Universa

07/10/2022 04h00

O atual presidente e candidato à reeleição Jair Bolsonaro nunca escondeu seu desprezo pelas mulheres, como mostramos regularmente aqui em Universa e como já tratado por mim aqui neste espaço.

Cortou 90% da verba destinada a ações de combate à violência contra a mulher em sua gestão.

Uma das maiores reduções no orçamento de ações que nos beneficiariam diz respeito ao dinheiro que financiaria a implantação de escolas para educação infantil, R$ 2,5 milhões, o que representa um corte de 97,5% em relação a esse ano. Essa queda impacta diretamente mulheres que são mães, especialmente as mais pobres, que não têm recursos para pagar mensalidades em creches particulares e que, por isso, não podem sair para trabalhar, já que não têm com quem deixar os filhos.

O governo também não previu um centavo a Políticas de Igualdade e Enfrentamento à Violência contra as Mulheres. Além de ter feito cortes em políticas públicas de áreas diversas que têm impacto sobre a população feminina, como previa um documento elaborado pelo próprio governo.

Jair Bolsonaro tem dito que fez 70 projetos para as mulheres. É mentira. Todos eles vieram do Legislativo. No caso da distribuição gratuita de absorventes, iniciativa popular das meninas da GirlUp, o presidente vetou o projeto que havia sido elaborado e aprovado pela Câmara e pelo Senado. Depois, o Congresso derrubou o veto. Por essas e outras, a composição do parlamento é tão importante.

"Bolsonaro sempre diz que foi o governo que sancionou muitas leis para as mulheres (apesar de não ter sido o proponente de nenhuma), mas nunca diz que quase nenhuma dessas leis consegue ser realidade porque ele apresentou o pior orçamento da história para política para mulheres", me disse a deputada federal Sâmia Bomfim, do PSOL.

Conversei com ela e com Adriana Ventura, do Novo, duas parlamentares de campos políticos diferentes, que estarão na Câmara na próxima legislatura, ambas representantes do estado de São Paulo e com atuação relevante na chamada "bancada feminina" do Congresso.

"Entendo que a política orçamentária é uma prerrogativa do presidente da República, mas vejo com preocupação os cortes que dizem respeito à educação infantil, incluindo creches. Enquanto não colocarmos a educação básica como prioridade, será mais difícil fortalecer o papel das mulheres no mercado de trabalho e na sociedade", diz Adriana Ventura.

Já Sâmia justifica assim os cortes feitos por Bolsonaro: "Para ele, as mulheres nunca foram, de fato, prioridade. O machismo está nos seus gestos e em suas ações, no seu desrespeito com mulheres em geral. E isso tem reflexo na forma como o orçamento se estrutura. Agora que ele disputa o segundo turno, tenta a todo custo reverter essa situação. Mas fato é que as mulheres em sua maioria rejeitam Bolsonaro justamente porque sentem na pele os impactos de uma gestão desastrosa, incompetente, insensível e machista".

Perguntei a elas quais são os projetos que consideram prioritários em tramitação na casa. Adriana Ventura ressaltou a necessidade de continuar a abrir espaço para que cada vez mais mulheres empreendam, se politizem e se tornem protagonistas de suas próprias vidas. A deputada acredita que o meio para isso é o empreendedorismo, que, segundo ela, é uma ferramenta de transformação social, já que "o aumento da renda familiar permite que se invista mais em educação, lazer e cultura —melhorando não só a vida da empreendedora, mas de todo seu núcleo familiar".

Ela cita três iniciativas que considera prioritárias: o projeto de lei que assegura às vítimas de violência doméstica e familiar o direito à comunicação prévia quando do relaxamento de medida de privação de liberdade ou de medida protetiva de urgência aplicada contra seu agressor. "Outro projeto é o que que assegura às alunas gestantes e lactantes do ensino superior o acompanhamento remoto das aulas, a partir do oitavo mês de gestação e durante três meses."

Por fim, Adriana cita como prioridade o combate às disparidades salariais entre homens e mulheres, que, segundo ela, podem ser minimizadas por meio do projeto de lei de autoria de Sâmia Bomfim, que pretende substituir a licença-maternidade por um licença-parentalidade, a ser distribuída entre os dois responsáveis pela criança, com o objetivo de incentivar a contratação de mulheres.

A bancada feminina na Câmara cresceu de 77 nessa legislatura para 91 parlamentares a partir de 2023, o que pode impulsionar algumas pautas. Porém, como vimos, a polarização aumentou bastante e isso também se refletiu no Congresso. Sâmia Bomfim acredita que a bancada deve ter uma atuação forte, porém difícil diante da barreira conservadora na próxima legislatura, a exemplo dos últimos quatro anos.

Entre as prioridades para ela estão os projetos por delegacias da mulher abertas 24h, pelo aumento do prazo de prescrição para reparações de crimes sexuais contra crianças e adolescentes e pelos que reforçam o enfrentamento à violência obstétrica. "São todas propostas para problemas profundos que vivem milhões de mulheres brasileiras".

A deputada do Novo faz um alerta: "Se a Câmara se perder em disputas e guerras ideológicas, entendo que isso pode ofuscar a aprovação de pautas femininas que são capazes de realizar mudanças estruturantes. Também temos de levar em consideração a relação de governabilidade entre Legislativo e Executivo. As pautas relativas às mulheres podem encontrar entraves se não houver articulação entre as instituições".

caminhos de concordância entre as deputadas, apesar das diferentes visões políticas entre elas. "Alguns são possíveis de avançarem porque dizem respeito a temas que tendem a ser mais consensuais, como o enfrentamento à violência contra mulheres e crianças. Os que dizem respeito a ganho de direitos relativos ao mundo do trabalho, como o Estatuto da Parentalidade, precisa enfrentar um Congresso de maioria com pensamento liberal na economia", diz Samia.

Adriana concorda: "Espero que essa nova bancada consiga superar as desavenças ideológicas e partidárias para que avancemos nas pautas de combate à violência doméstica, à desburocratização favorável ao empreendedorismo feminino e ao combate de disparidades salariais entre homens e mulheres."

Rompida com o presidente e sem apoio da ala bolsonarista, a deputada federal Joice Hasselmann (PSDB-SP) não foi reeleita, mas passou os quatro últimos anos no Congresso, inclusive como líder do partido que a elegeu em 2018, o extinto PSL. Ela é autora de um projeto de lei que prevê a criação de um banco de crédito para mulheres, vinculado à capacitação profissional e a uma assessoria técnica para que elas consigam empreender. Joice fala de algo fundamental quando se tratam de avanços na pauta de gênero: a composição da mesa diretora da Câmara e a falta de espaço que os partidos dão para mulheres em cargos de liderança:

"O problema não é a falta de projetos, é a falta de prioridade dada pela presidência da Câmara, que é quem define o que será votado. Acontece um 'cala boca' para a bancada feminina. E a dificuldade de avanço começa na formação da mesa diretora, que é extremamente machista. São pouquíssimas mulheres líderes de partidos, como eu fui, e para conseguir isso tive de fazer uma guerra. Os partidos são comandados por homens que se acham donos das legendas. Isso é muito mais visível em partidos de centro direita e de direita. Essa representatividade é maior em partidos de esquerda, mas ainda insuficiente. Sem mulheres em lugares de poder, dentro do poder, fica muito mais difícil articular e fazer essas pautas avançarem."

Mas, como começamos falando, não adianta haver consenso e apoio no parlamento se não houver dinheiro para execução. Nesse caso, é possível aprovar créditos extraordinários para realizar uma ou outra política pública. Samia ressalta, entretanto, que o mais importante é garantir no próximo ano a recomposição do orçamento. "Só assim poderemos mudar estruturalmente essa lógica de secundarizar os direitos das mulheres. Recriar o ministério das mulheres, colocar nele pessoas compromissadas e capacitadas. Espero que Lula vença para que essas medidas consigam ter força", finaliza.