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Tatiana Vasconcellos

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Mulheres são a favor de pautas feministas, mas contra ativismo. Por quê?

Manifestação de mulheres no Rio de Janeiro em favor dos direitos femininos - Ellan Lustosa/ Código 19/ Estadão Conteúdo
Manifestação de mulheres no Rio de Janeiro em favor dos direitos femininos Imagem: Ellan Lustosa/ Código 19/ Estadão Conteúdo

Tatiana Vasconcellos

Colunista do UOL

30/09/2022 04h00

"A extrema direita usa o corpo da mulher como elemento de luta política, é sempre um símbolo centralizador das questões que o conservadorismo mobiliza. Nos últimos anos, no entanto, houve uma certa hegemonia social e cultural dessas questões, passou a ser politicamente incorreto ser ostensivamente machista. Houve um ganho inegável do feminismo". A afirmação é da cientista social Esther Solano, co-autora do livro "Feminismo em Disputa", com Camila Rocha e Beatriz Della Costa, lançado pela editora Boitempo. A obra tem como base a pesquisa "Conservadorismo, gênero e feminismo", realizada pelo Instituto Ideia Big Data com 45 mulheres que se arrependeram do voto em Jair Bolsonaro em 2018 e que ainda não tinham decidido seu voto para presidente. O estudo pretende mapear pautas feministas no espectro conservador e propor estratégias de diálogo.

Qualquer que seja o resultado das urnas no domingo, é urgente que voltemos a conversar. "Precisamos dar mais passos à frente por mais recursos para mulheres, maior representatividade política e melhor acolhimento às sobreviventes de violência de gênero", defende a cientista política Camila Rocha.

Das mulheres entrevistadas no estudo, 29% se declaram feministas, 34% se dizem não feministas —o que não significa que não se identifiquem com as pautas do grupo. As pesquisadoras entendem que o feminismo está sendo disputado. As pontes dinamitadas pelo bolsonarismo têm de ser reconstruídas de maneira a avançarmos em políticas públicas que dizem respeito à nossa sobrevivência, dignidade e aos nossos direitos. A boa notícia é que existem caminhos para isso.

Para começar, as mulheres são a maioria do eleitorado brasileiro. Somos 82.373.164 cidadãs aptas a votar, o que representa 52,65% do total. Mas apesar disso, estamos sub-representadas nas esferas de poder. Nas eleições de 2018, apenas seis das 81 vagas do Senado Federal foram conquistadas por mulheres. Na Câmara dos Deputados, dos 513 eleitos, somente 77 eram do sexo feminino. E apenas uma governadora foi eleita: Maria de Fátima Bezerra, no Rio Grande do Norte (RN). É muito pouco.

Pela pesquisa, 77% das mulheres ouvidas acham que é necessária uma participação maior na política e 70% delas declararam que votariam em uma mulher negra para a presidência da República. Entendem que sua vida melhoraria se elegessem mais mulheres porque elas pensariam mais nas eleitoras. Apesar disso, a má notícia é que a Câmara Federal deve ter uma renovação baixíssima nessas eleições.

Outro ponto de convergência é a luta por salários iguais para homens e mulheres (83%). "A maioria delas também se disse favorável a um auxílio econômico às que exercem trabalho doméstico", ressalta Esther Solano.

Já as discordâncias mais evidentes são nossas velhas conhecidas: aborto e o termo "feminismo" ou "feminista". Nos últimos anos, assistimos a uma criminalização do termo pelo bolsonarismo e pela extrema direita, que conseguiram consolidar em parte do eleitorado essa ideia.

"Rejeitam a figura da feminista, mas têm uma ideia caricatural e folclórica: agressiva, violenta e vulgar. Para essas mulheres a melhor forma de lutar por seus direitos é mais moderadamente, discretamente, um tipo de coletivismo que parte mais do trabalho, do micro, do território: coletivos de empresárias, de religiosas, que são super importantes. É diferente porque a luta não parte da esfera política, é muito meritocrática, baseada na máxima de que é trabalhando que vamos chegar a lugares a que ainda não conquistamos", diz Esther.

Aborto é assunto delicado entre as conservadoras, já que é muito atrelado à religião e aos conceitos de "pecado" e "punição cristã". "É a ideia de que a mulher que faz sexo de maneira imoral, libertina ou descuidada merece ser punida, não o feto". Por outro lado, Esther conta que, talvez paradoxalmente, a rejeição total à maternidade compulsória aparece com muita força. O entendimento majoritário é de que a mulher pode ser mãe se e quando quiser, mas nenhuma mulher deve ser obrigada a ter filhos.

Diante das discordâncias aparentemente incompatíveis, a pesquisadora aponta possibilidades de consonância. Para começar, é preciso desinterditar a escuta. Entender e admitir que o feminismo está em disputa e que existem movimentos interessantes na direita que podem ser frutíferos para todas as mulheres. Depois, mas não menos fundamental, é elaborar estratégias de comunicação que hierarquizem assuntos e aglutinem mulheres de campos diferentes em torno das convergências. Está claro para a cientista política que é indispensável adequar o léxico.

"Podemos começar a discussão pela busca de igualdade salarial, em vez de começar pelo aborto. Se falar sobre aborto cria fortes bloqueios cognitivos e emocionais, vamos falar sobre educação sexual, que encontra confluência entre os campos. Se usar a palavra 'feminismo' cria também um tipo de bloqueio emocional porque foi criminalizada pelo bolsonarismo, vamos falar sobre 'luta das mulheres'. E, sobretudo, vamos ter clareza de que, ao entrar nesse diálogo, como todo tipo de negociação, ambos os lados têm de estar dispostos a ceder nas suas agendas em favor de consensos que, sim, existem".

Temos bons exemplos dessa dinâmica na nossa história recente. Em 1988, durante a elaboração da nossa Constituição, as 26 deputadas eleitas conseguiram se unir, apesar de suas diferenças ideológicas, e juntamente com movimentos da sociedade civil aprovaram 80% das demandas pró-direitos das mulheres, como o de terem terras rurais em seus nomes, divórcio e licença maternidade, movimento que ficou conhecido como "lobby do batom".

Te deu esperança de avanço? Espera que tem mais: segundo a pesquisa, 92% das entrevistadas entendem que somos vítimas de uma estrutura patriarcal e machista e concordam que é urgente combater a violência de gênero nas esferas doméstica e pública. E algo que surpreendeu as pesquisadoras: quando questionadas sobre modelos de mulheres empoderadas na política, apesar de Michelle Bolsonaro e Damares Alves serem citadas, sabem quem aparece com força? Marielle Franco, vereadora eleita no Rio de Janeiro, executada pela milícia em março de 2018.

"Apesar de ter atuado em favor de pautas progressistas, ela é vista por parte das conservadoras como uma mulher guerreira, de luta, que se preocupava com a população mais vulnerável, sinônimo de vida, de enfrentamento, de garra. A própria ex-presidente Dilma Rousseff é reconhecida por mulheres que votaram em Bolsonaro como uma mulher aguerrida, empoderada. Ou seja, há modelos femininos de consenso, como pode ser Marielle", arremata.

Que no domingo a gente vote com amor e consciência. Que não percamos de vista a luta das mulheres, que deve contemplar sobretudo as mais vulneráveis, mulheres pretas e pobres, trans, indígenas, que são mães. Que sejamos capazes de voltar a dialogar e a estruturar políticas públicas que garantam existências dignas e melhores para todas nós.

E você, já decidiu em que mulheres vai votar para os legislativos estadual e federal?

Para ler:
"Feminismo em Disputa", de Beatriz Della Costa, Camila Rocha e Esther Solano, ed. Boitempo

Para ouvir:
"Apesar de você", de Chico Buarque

"Menina, amanhã de manhã", na voz de Mônica Salmaso