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Tatiana Vasconcellos

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Por que ainda acho difícil me animar com a Copa

Tatiana Vasconcellos: "Na copa passada, arrumamos um totem em tamanho real do Neymar, que apelidamos de Neymarzão" - Arquivo pessoal
Tatiana Vasconcellos: 'Na copa passada, arrumamos um totem em tamanho real do Neymar, que apelidamos de Neymarzão' Imagem: Arquivo pessoal

Colunista de Universa

27/11/2022 04h00

Uma Copa do Mundo deveria celebrar os valores do esporte e a convivência entre os diferentes. Mas, em 2022, jogadores de uma dezena de países são proibidos pela entidade máxima do futebol de usar uma braçadeira com um símbolo LGBTQIA+. Como se empolgar com uma festa organizada por uma instituição sabidamente corrupta, masculina, velha e ultrapassada como é a Fifa, que veta o time da Bélgica de usar uma camisa com a palavra LOVE na gola? Se fosse "hate", será que veriam problema? Por que o amor é um problema? Porque estamos no Qatar.

Logo eu que vivo perguntando (a mim e aos outros) pra quem você dá o seu dinheiro? Que roda você ajuda a girar? A de uma ditadura que condena à morte pessoas homossexuais? Que oprime mulheres? Que usa trabalho escravo em pleno 2022? Como se animar com um evento global realizado num país desse, graças a um golpe, com a anuência da Fifa? Não dá pra ignorar isso tudo. Está muito errado.

Pois acordei na segunda-feira com amigos eufóricos no WhatsApp, falando de gols, de bolão, de 7 a 1, de Kane, da semelhança dos jogadores da Inglaterra com integrantes de bandas indie, da fraqueza técnica e tática do Irã. Não sabia nem o que tava acontecendo, mas rapidamente me lembrei que o maior evento planetário de futebol tinha começado. Disse que apostaria no Irã só pra causar e que o jogador da Inglaterra parecia o baterista do Black Keys.

Desculpem ser a chatonilda do rolê (não seria a primeira vez e nem eu a única chatona, não é mesmo?), mas tô zero motivada com essa Copa, gente. O caráter mercadológico que tomou conta do futebol vem minando a minha paixão há uns anos. É muito negócio milionário suspeito, mutreta, violência e preconceito para pouco esporte e tudo o que ele significa, que é o contrário disso.

Busco na memória como estava minha empolgação nas copas passadas. Em 2010, na África do Sul, estava entusiasmada com um quadro que fazia no rádio com outras mulheres que comentavam todos os jogos, sem a pretensão de serem super técnicas, e era legal demais. Lembro de ser motivo de chacota entre os amigos quando dizia que não tava no clima, porque bastava a primeira seleção latinoamericana entrar em campo e lá estava eu com eles no bar ou na casa de alguém sofrendo com a Colômbia, torcendo pra Argentina, vibrando com o Uruguai, gritando pelo Chile ou pelo Brasil.

Na copa passada, arrumamos um totem em tamanho real do Neymar, que apelidamos de Neymarzão. Ele viu todas as partidas do Brasil com a gente —algumas, caído no chão, cavando falta— e rendeu imagens maravilhosas que compartilho aqui com você. Neymarzão e os amigos foram a melhor coisa daquela Copa. A euforia deles acabava despertando meu espírito festeiro.

Mas dessa vez tá diferente. Para começar, é praticamente impossível pra mim, a despeito do talento futebolístico, torcer para o tal craque do Brasil. Ele encarna tudo o que eu desprezo e combato. O classismo, o machismo, a extrema direita, a alienação da realidade, a falta de consciência racial e de classe, a obtenção de vantagens graças a relações de poder? E parece que vai piorando conforme o tempo passa. Não dá.

Por outro lado, o time tem Vinícius Jr, que parece ser a antítese do tal craque, gosto! Outra: tirando dois ou três jogadores, não conheço ninguém que integra esse time, já que não acompanho o futebol europeu. Por outro lado, nos últimos amistosos que acompanhei de soslaio enquanto trabalhava no rádio, me surpreendi com o jogo da seleção. Arrisco dizer que nunca vi um time do Brasil jogar rápido assim, e talvez isso se deva justamente ao fato de os atletas atuarem na Europa.

No mais, não ando muito contente com o Brasil, confesso. Com esses matusquelas que não aprenderam a perder e não têm ideia do que significa o estado democrático, que se apropriaram da camisa da seleção para se opor ao desejo legítimo da maioria da população expresso nas urnas em eleições livres, como deve ser.

Com o mundial, parece que o símbolo está sendo retomado aos poucos e deixando a extrema direita pra lá. Pelo menos isso. Ando realmente cansada de acompanhar e noticiar a terra arrasada que fomos nos tornando nos últimos quatro anos. E muitos atletas do time de Tite concordam com esse absurdo. Aliás, saudade do Tite do Corinthians, menos coach e mais técnico. O tom pastoral e as frases de efeito só me dão um pouco de preguiça. É, o Brasil tá meio mal na fita comigo, apesar da esperança de voltarmos a viver num país mais ou menos normal que as eleições trouxeram.

Mas, poxa, tem a Argentina de Lionel Messi, meu preferido dos últimos tempos. Seria muito legal que ele ganhasse uma Copa, título inédito na carreira. Sim, torço pra Argentina, mas principalmente pro Messi, parem de bobagem. Não precisava perder pra Arábia Saudita, né? Justo pra Arábia Saudita. O único país que condenou seus militares pelos crimes bárbaros que cometeram na ditadura perdeu para o time que representa uma ditadura que manda matar cidadãos.

Também torço sempre para as seleções africanas contra as europeias, porque sim, mesmo sem saber direito quem são os jogadores. Custava Senegal ter vencido a Holanda? Esse é meu jeitinho de viver o Mundial (o que explica por que nunca tive bom desempenho nos bolões).

A parte boa vem da ousadia e da integridade de quem tenta driblar essas regras descabidas. Exalto a coragem da comentarista inglesa, ex-jogadora do Arsenal e da seleção inglesa e repórter da BBC, Alex Scott, que meteu no bíceps a braçadeira colorida em que se lia "OneLove" e entrou ao vivo do campo.

Aplaudi a atitude dos jogadores ingleses, que se ajoelharam em campo em protesto contra a proibição do uso do adereço. E a manifestação silenciosa dos atletas do Irã, se recusando a cantar o hino do país, que vem reprimindo violentamente há meses manifestações em defesa de uma mulher que foi presa e morta sob custódia do estado por estar com uma mecha de cabelo à mostra.

Festa? Sei não. Vamos ver se o espírito baladeiro que existe dentro de mim sobrevive a tudo isso. Escrevo essa coluna ao longo da semana (pra Arábia Saudita, Argentina? Francamente!). Já que gosto de mudar de ideia e não é difícil me contagiar pela folia, não me responsabilizo se neste momento estiver num bar de Paraty, entre uma mesa e outra da Flip, gritando "VAI, MARROCOS!".

Para ouvir:

"O Sequestro da Amarelinha", podcast da Rádio Novelo.