Topo

Tatiana Vasconcellos

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Bruxas do passado são as 'solteironas' de hoje? Pois sejamos bruxas juntas

Quadro "Bruxas Jovens", de Hans Baldung Grien, 1523: resquícios da perseguição às mulheres persistem até hoje - "Bruxas Jovens", de Hans Baldung Grien, 1523
Quadro "Bruxas Jovens", de Hans Baldung Grien, 1523: resquícios da perseguição às mulheres persistem até hoje Imagem: "Bruxas Jovens", de Hans Baldung Grien, 1523

Tatiana Vasconcellos

Colunista de Universa

11/11/2022 04h00

Parece incrível, mas o estigma da "solteirona" ainda persiste em pleno 2022. Passou dos 40 e não é casada? Tem algum problema. Com certeza é frustrada. Como se não houvesse mil outros objetivos na vida, além de encontrar a "metade da sua laranja", um "sapato para seu pé cansado", a "tampa da sua panela". Nunca me senti confortável nem representada por esses ditos populares e sorri amarelo toda santa vez que ouvi uma dessas. Sorri.

Numa festa, sou apresentada a um homem. Numa roda, falávamos sobre trabalho (sério, não há outro tema nessa cidade?) quando, depois de um silêncio que me pareceu indicar o fim do assunto, ele retoma a conversa: e seu companheiro? Já versada nesse tipo de diálogo, que quase sempre diz respeito a um marido, reagi com a pior cara e outra pergunta: que companheiro? Ele se referia ao meu companheiro de trabalho. Me desculpei, disse que não tinha entendido direito a pergunta, respondi sobre ele, o meu companheiro. E fui dançar.

Esse tipo de questionamento, feito por homens e mulheres, me arranca respostas um tanto atravessadas. Flanar solo por aí é uma delícia, mas também é estafante. Sobretudo porque, sabemos, uma mulher solteira quase sempre é vista como inadequada. Ainda hoje muitas de nós somos levadas a acreditar que precisamos de um par para sermos completas —nem vou falar sobre a decisão de não ter filhos. Do contrário, há algo de errado conosco. Aposto 50 talkeis que você já se sentiu assim.

Esse sentimento de inadequação, de que "o normal", e portanto seguro, é ter um par, mantém muitas mulheres em relacionamentos nocivos, em que se amassam para caber. Conheço mulheres incríveis, boas amigas, excelentes mães, bem-sucedidas profissionalmente, amorosas, belíssimas, generosas, batalhadoras, cheias de integridade que se reduzem emocionalmente para se ajustar às inseguranças de seus parceiros.

Para não ofuscá-los, não evidenciar seus complexos e, assim, não se sentirem culpadas por isso. Se diminuem para não desagradá-los e não ter de lidar com a reação de quem é incapaz de lidar com as demandas da parceira. Se diminuem para não ficarem sozinhas.

Essa cultura vem sendo construída há séculos —e isso não é uma hipérbole. No livro "Bruxas - A Força Invencível das Mulheres (ed". Âyiné), um arrasa-quarteirão na França e recém-lançado no Brasil, a jornalista e editora-chefe do "Le Monde Diplomatique", a suíça Mona Chollet, volta na história para estabelecer uma relação entre a "caça às bruxas" no século 15 e a construção da imagem da mulher nas sociedades europeia e norte-americana, ainda hoje tão enraizada. Inclusive no Brasil.

Em geral, as bruxas eram de classes populares. Curandeiras, que cuidavam de doentes, feridos e mulheres na hora do parto, sempre foram respeitadas na comunidade, até serem associadas a comportamentos diabólicos. Eram acusadas de matar crianças, já que costumavam fazer partos e também ajudar as mulheres que não queriam ter filho.

A caça às bruxas demonizava a velha. Era proibido envelhecer, pois velha = bruxa e bruxa = perseguida, condenada e morta. As velhas eram consideradas repugnantes fisicamente e ameaçadoras pela sua experiência, por isso eram as favoritas dos caçadores. Te parece familiar? "Se a idade as penaliza no plano amoroso e conjugal, se a corrida pela juventude ganha para elas contornos desesperados, é muito em função dessas representações que continuam a habitar nosso imaginário, das bruxas de Goya às de Walt Disney. A velhice das mulheres continua, de um jeito ou de outro, feia, vergonhosa, ameaçadora, diabólica."

Porém, segundo a autora, a maioria das mulheres acusadas eram solteiras e viúvas. Ou seja, as que não dependiam de um homem. Eram expulsas de seus trabalhos, proibidas de estudar e assim eram sufocadas economicamente.

"Ter um corpo de mulher podia ser suficiente para fazer de você uma suspeita. Qualquer mulher que saía da linha poderia despertar o interesse de um caçador de bruxas. Responder a um vizinho, falar alto, ter personalidade forte ou uma sexualidade um tanto livre demais, ser inoportuna de alguma maneira era suficiente para colocá-la em perigo." Ser bruxa é lindo demais!

E quem determinava o caráter inoportuno e o destino dessas mulheres? O sistema, inclusive de justiça, e as instituições religiosas, ambos totalmente masculinos. As grandes caças começaram por volta de 1400 e ficaram mais intensas a partir de 1560. Até 1782 há notícias de mulheres que foram executadas por acusação de bruxaria.

A origem do mito da bruxa coincide com o surgimento da imprensa, em 1454, apontada pela escritora como instrumento fundamental de propagação e reforço da ideia. E assim a violência física foi institucionalizada como modo de defender a sociedade de uma ameaça demoníaca chamada mulher.

Até meados de 1970, a estimativa era de que 1 milhão de mulheres haviam sido mortas. Hoje, fala-se em 50 ou 100 mil. Chollet ressalta que nessa estatística não estão as que foram linchadas, se mataram ou morreram na prisão. As que sobreviveram tiveram suas vidas estilhaçadas e sua reputação e de suas famílias arruinadas. Mesmo as que não foram acusadas foram atingidas. A tortura a que as "inadequadas" eram submetidas em praça pública servia pra disseminar medo e terror, e advertia as mulheres a serem o esperado delas: dóceis, submissas, discretas. Foram convencidas a acreditar que eram culpadas e más.

"Hoje, a independência das mulheres, mesmo quando possível jurídica e materialmente, continua provocando uma desconfiança geral."

"A sua relação com homem e filhos, vivida como uma entrega, continua sendo considerada o centro de sua identidade. O modo como as meninas são criadas e socializadas as ensina a temer a solidão e deixa suas capacidades de ser autônoma altamente desidratadas. Atrás da figura famosa da "solteirona com um gato", deixada de lado como se fosse um objeto digno de piedade e de zombaria, se distingue a sombra da terrível bruxa de outrora, rodeada de seu "animal diabólico"." Buuu!

E cá estamos nós. Quantas mulheres você conhece vivem relacionamentos sem amor, apoio, acolhimento ou companheirismo? Vivem sozinhas, apesar de terem um marido. Um noivo. Um namorado. Acompanhadas, porém sozinhas. O medo de ficar sem um par romântico e a convicção de que nunca mais alguém vai amá-las como ele as mantém em relacionamentos ruins. Pode ser ainda pior quando o companheiro usa esse temor para não deixá-la ir embora, para não se sentir abandonado.

Não é fácil romper essa lógica. É dolorido seguir um caminho solo quando se está acostumada, quando lá no fundo entendemos, baseadas nessa carga histórica pesadíssima, que "o normal" é viver em par, que estar sozinha é descabido. Ou mesmo quando se deseja seguir acompanhada. É como reaprender a andar sobre uma superfície diferente.

Já conversamos aqui sobre o quão saudável pode ser a diversificação das fontes de amor, cuidado e apoio, sem depositar toda expectativa afetiva em uma única pessoa. O mundo é imenso, viver é bom, há milhões de possibilidades de laços duradouros por aí. Vem, vamos ser bruxas!

Para ler: "Bruxas - A Força Invencível das Mulheres", de Mona Chollet, ed. Ayiné
"Calibã e a Bruxa", de Silvia Federici, ed. Elefante