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Tatiana Vasconcellos

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

'Sociedade vive assustada, com medo e em pânico', diz diretora de filme

Adriana Dutra, que dirigiu o documentário "Sociedade do Medo", em cartaz nos cinemas - Reprodução/Instagram
Adriana Dutra, que dirigiu o documentário "Sociedade do Medo", em cartaz nos cinemas Imagem: Reprodução/Instagram

Tatiana Vasconcellos

Colunista de Universa

18/11/2022 04h00

Medo é um estado afetivo que nos mantém vivos e alertas. Mas também é "a principal ferramenta para controlar populações numerosas nas sociedades modernas". Esse é o mote do documentário "Sociedade do Medo", dirigido pela cineasta Adriana Dutra, que também fez "Quanto Tempo o Tempo Tem?", sobre um dos meus temas preferidos da vida (disponível na Netflix).

O medo é um velho meio de dominação. Do homem sobre a mulher —o contrário também acontece—, do líder religioso sobre os fiéis, do político sobre a população.

Na semana passada conversamos aqui sobre o medo de ser solteira, o medo de "ficar sozinha" e sobre a hipótese de que esse temor mantenha tantas mulheres presas em relações ruins e nocivas.

Nos últimos anos, graças ao trabalho de bravas jornalistas, assistimos vir à tona uma série de denúncias de violência sexual cometida por curandeiros religiosos que usam o medo da doença, da morte, para dominar e violentar mulheres.

Também recentemente, vimos aumentar o apoio a figuras políticas de extrema direita que se sustentam graças ao medo que incitam na população, nem que, para isso, inventem ameaças e inimigos imaginários.

"Nossa sociedade vive um momento em que está muito latente e perceptível essa qualidade de medo, onde todos nós vivemos assustados e em pânico por diversos motivos", me disse a cineasta Adriana Dutra.

"Uns têm medo da segurança, outros têm medo do fim, dos problemas, da destruição do meio ambiente, outros de uma guerra mundial, outros de uma pandemia, de uma doença", afirma ela, que foi ouvir pensadores e pensadoras pelo mundo para tentar organizar um mosaico e encadear as consequências dessa manipulação, como isso se relaciona com a ascensão da extrema direita no mundo e com a descredibilização das instituições e a crise do capitalismo.

Na semifinada rede social Twitter, perguntei do que as pessoas têm medo. Elas responderam, percebendo que podem ser manipuladas por ele.

Há, por exemplo, o medo de não ter como se sustentar e não ter o que comer, fazendo com que as pessoas sejam reféns do trabalho e exploradas por seus empregadores, ou por si mesmas acreditando que são livres.

A religião ocidental se baseia no medo. Do pecado, do deslize, da tentação. Sob risco de punição severa. Os extremistas também.

"A criação desse Deus punitivo o transforma em um imperador ruim, que é capaz de fazer com que a gente sofra por não obedecer seus desejos. A gente observa a extrema direita crescendo no mundo, utilizando a religião também como uma ferramenta de manipulação", aponta Adriana.

"Na política, isso acontece também. Os regimes nazista e fascista nada mais são do que políticas de medo. Daí vem a necessidade de um grande imperador, de uma grande força suprema, de um ditador, de um governante que possa dar segurança."

Segurança para seus medos é tudo o que desejam os consumidores de informações fraudulentas, uma vez que a realidade que o noticiário expõe quase sempre é desagradável, sobretudo num país com tantas questões complexas.

No filme, um dos entrevistados traz mais um ingrediente para esse caldeirão surreal: "Existe uma relação visceral entre medo e ignorância, no sentido de não saber: temo o que não conheço, a incerteza. Também existe uma relação entre informação, conhecimento, e como lidar com esses medos. Quanto menos você entende o mundo, mais assustador ele parece a você".

Se informações sobre o mundo real despertam receio, nada mais quentinho do que consumir apenas algo que o aplaque. Ainda que seja falso, uma reinvenção ficcionada da realidade. Uma teoria conspiratória.

Extremistas sabem bem como fazer isso. Não à toa, atacam e desmantelam tudo o que tem relação com educação e cultura, desprezam as ciências humanas. Porque são ferramentas de estímulo e produção de pensamento crítico.

Afrontar as autoridades com conhecimento especializado, como faz a imprensa profissional, é uma estratégia para descredibilizá-las, a elas e às suas informações, até que as pessoas percam as referências do que podem ou não acreditar. (Até chegar um trilhardário, comprar uma rede social e decidir que a partir de agora basta se autointitular confiável e pagar um dinheiro pra ele).

Uma das consequências desse terror coletivo é o aniquilamento dos vínculos invisíveis que precisamos pactuar para habitar o mesmo planeta. Têm sido explícitos no nosso dia a dia episódios de violência envolvendo pessoas profundamente machucadas, raivosas e armadas. "Uma sociedade absorta em seus medos é uma sociedade com pouca compaixão. É uma sociedade que não olha para o outro, que quer o tempo inteiro buscar algum tipo de proteção, nem que seja a partir da exclusão do outro", analisa a cineasta.

"O crescimento do movimento de extrema direita nada mais é do que a consequência de uma sociedade completamente em pânico, desse imaginário criado por poderes que querem o rebanho funcionando para que gerem mais e mais dinheiro", conclui a cineasta.

Na sociedade do medo deixamos de pensar criticamente. Estamos alienadamente presos na fantasia do pavor. E a roda continua a girar.


Para ler:
"Sociedade do Cansaço", de Byung-Chul Han (editora Vozes)
"Psicopolítica", Byung-Chul Han (editora yiné)

Para ver:
"Sociedade do Medo", Adriana Dutra, em cartaz nos cinemas
"Quanto Tempo o Tempo Tem?", Adriana Dutra, no YouTube

Para ouvir:
"Medo e Delírio em Brasília", de Pedro Daltro e Cristiano Botafogo, no seu tocador preferido