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Tatiana Vasconcellos

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

'Tinge esse cabelo': como as opiniões não solicitadas podem nos adoecer

Uma pesquisa sobre autoestima, imagem e confiança corporal mostra que só 4% das mulheres do mundo inteiro se consideram bonitas - iStock
Uma pesquisa sobre autoestima, imagem e confiança corporal mostra que só 4% das mulheres do mundo inteiro se consideram bonitas Imagem: iStock

Tatiana Vasconcellos

Colunista de Universa

29/07/2022 04h00

"Tinge esse cabelo". "Acabou a maquiagem?". Essas frases sobre a minha aparência foram proferidas essa semana por pessoas que nunca vi na vida, que não faço ideia de quem sejam —e a quem, portanto, jamais solicitei opinião—, durante o exercício do meu ofício de apresentadora. O tempo e a análise me fizeram lidar melhor com esse tipo de coisa, lamentavelmente recorrente, ainda que siga inconformada que as pessoas se sintam à vontade para ser tão sem noção explicitamente assim. Mas, bem, elas são. E certamente você, mulher, já ouviu (ou vive ouvindo) sugestões não requeridas sobre a sua aparência.

Agora, imagina se além de inconformismo e alguma raiva ou risada, dependendo do dia, isso causasse preocupação séria em ter um cabelo ou uma pele que o sujeito acha mais adequado pra mim, inclusive para não ter que passar pelo constrangimento dessa "cobrança" pública. Pois isso tem nome, se chama pressão estética. E é assim que ela age sobre nós. Sobre homens, para serem vigorosos e atléticos, e sobre mulheres para serem… Bem, para terem corpos e rostos completamente diferentes do que em geral têm.

Não estou livre dessa pressão, claro. Arrisco dizer que nenhuma de nós está, em maior ou menor grau. Infelizmente. Agradeço às deusas todos os dias por ter sido adolescente antes da existência das redes sociais. Não sei se suportaria, talvez sofresse de distorção de imagem. Talvez trabalhasse loucamente para ganhar algum dinheiro que me permitisse fazer procedimentos estéticos que transformassem meu rosto e me deixassem com cara de um filtro do Instagram. Talvez achasse realmente necessário congelar e eliminar gordura da barriga, aumentar os peitos, diminuir a cintura, levantar a bunda, afinar as coxas e o nariz, recauchutar as panturrilhas, comer menos pão e cortar a cerveja para me sentir bem com o meu corpo. Leia de novo essa última frase. Te soa normal precisar de tudo isso pra se gostar?

Uma pesquisa global coordenada pela Dove sobre autoestima, imagem e confiança corporal em dezembro de 2020 mostra que só 4% das mulheres do mundo inteiro se consideram bonitas. Do total, 72% sentem uma pressão enorme para serem bonitas. Somos generosas, mas só com as outras. E 80% das mulheres concordam que todas elas têm algo bonito em si, mas não reconhecem a sua própria beleza.

O "tinge esse cabelo", que pode vir de homens ou mulheres, é a verbalização crua e direta dessa engrenagem e pode desembocar em quadros de dismorfia corporal. Para aIcançar aquela cara e aquele corpo que disseram que são o ideal, mas que quase ninguém naturalmente tem, fazem-se sucessivas intervenções que podem terminar em graves transtornos de personalidade.

O que está acontecendo?, perguntei para a jornalista e pesquisadora em beleza e bem-estar Vânia Goy. "É uma temeridade. A quantidade de fotos de 'antes e depois' nas redes sociais não só encoraja mulheres a procurarem pelos procedimentos como também faz com que eles pareçam simples e livres de riscos. Ali profissionais parecem superqualificados, mas a escolha precisa ir além de um perfil do Instagram bem abastecido. O preço é um outro fator importante: é preciso desconfiar de valores muito diferentes dos praticados no mercado. Acompanhamos casos de mulheres enganadas, que foram submetidas a preenchimento usando, por exemplo, silicone industrial nos glúteos e na boca", alerta.

A despeito do avanço de campanhas que contemplam e entendem como bonitos diferentes corpos, os resultados práticos ainda parecem tímidos. O mesmo estudo citado acima mostra que 84% das meninas com 13 —treze!— anos já usaram filtro ou aplicativo para alterar a própria imagem nas fotos das redes sociais. E 78% delas tentaram mudar ou esconder pelo menos uma parte do corpo de que dizem não gostar antes de publicar. A isso a pesquisa dá o nome de "auto distorção digital".

É realmente uma temeridade que meninas tão novas já sofram de distorção de percepção da própria imagem. Exemplos de finais infelizes não faltam. Recentemente, a ex-modelo Linda Evangelista veio a público contar o terror pelo qual passou com o efeito colateral irreversível de intervenções estéticas no corpo. Ou a influencer Stephane Matos que teve problemas depois de uma sucessão de cirurgias malsucedidas no nariz.

Existem até perfis dedicados a denunciar mulheres enganadas e procedimentos mal feitos.

Pra quê, mesmo? Pra ficar "mais bonita"? Mais bonita segundo quem, gente? Estamos todos doentes, alterando nossos corpos de forma às vezes fatal por modelos de beleza que nem existem.

Num país profundamente desigual como o Brasil, se até quem tem recursos passa por problemas, imagina quem não tem. É maior a chance de cair na mão de charlatães, de profissionais despreparados ou até de sofrer sucessivas mutilações.

Daiana Cavalcanti fez uma abdominoplastia com o médico Bolívar Guerrero Silva, muito popular nas redes sociais e que vendia carnê para pagamento de pacotes de procedimentos estéticos. Um deles era chamado de "x-tudão". A prática é ilegal, segundo o Conselho Federal de Medicina (que não anda servindo pra muita coisa ultimamente). O médico Bolívar é acusado de manter refém a paciente, que chegou a ter parte do corpo necrosada, em cárcere privado. Ele está preso.

Já o hospital que ele comanda, o Santa Branca, em Duque de Caxias, no Rio, continua funcionando normalmente, e as cirurgias continuam sendo vendidas ilegalmente, tudo normal, circulando, circulando.