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Tatiana Vasconcellos

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

'BBB': tem coisa mais desinteressante do que acompanhar 4 homens héteros?

Finalistas do "BBB 22", ainda com Gustavo: reality show virou uma barbearia              - Reprodução/TV Globo
Finalistas do "BBB 22", ainda com Gustavo: reality show virou uma barbearia Imagem: Reprodução/TV Globo

Colunista do UOL

22/04/2022 04h00

O que pode ser mais a cara dos nossos tempos do que transformar o maior reality show do país em uma barbearia? Tenho chamado de "BBB" dos ressentidos. O que pode ser mais desinteressante do que acompanhar o comportamento de quatro homens heterossexuais confinados? Ah, larguei. Me interessa mais a mistura, me ver de algum jeito ali. E, olha, quase todos (hehe) parecem ser caras bacanas. Tanto que, aparentemente, entenderam que precisam estar atentos para não mais reproduzir comportamentos machistas. Em geral, eles foram acolhedores e gentis, sobretudo com Jessilane, a última das moicanas que sobrou com eles ali, coitada. Mas se não podem mais externar sua masculinidade como sabem fazer, qual o caminho para isso? Formar espaços e grupos em que eles podem relaxar e se expressar, formado por outros homens.

Conversando com o antropólogo Michel Alcoforado, ele me falava sobre o texto "Confraria da Esquina", de Rolf Malungo, em que ele observa o comportamento de homens da periferia do Rio de Janeiro. Em sua dissertação de mestrado, Malungo defende que, para construir a própria masculinidade, os homens precisam de espaços masculinizadores ou masculinizantes, onde se reúnem e fazem "homices".

No passado, esses espaços eram o bar, o futebol, o puteiro. Só que, com o avanço do feminismo, as mulheres passaram a ocupar esses espaços também. Alcoforado diz que os homens, então, descontextualizaram esses ambientes.

"Isso se dá em alguns aspectos. O primeiro deles, eu brincava, é a barbearia hipster, lugar onde mulheres não entram. O segundo é o grupo de WhatsApp, menos pelo conteúdo e mais pela forma como os caras interagem, pela necessidade de colocar em prática o jogo da masculinidade", explica ele. "E, agora, o 'BBB' ensina para a gente uma terceira coisa: homens podem construir esses espaços em qualquer lugar, basta estarem juntos. Eles não estão mais presos a um ambiente. Para isso precisam excluir os outros: homens que não se enquadram naquele padrão de masculinidade (Elieser talvez seja um desses casos) e mulheres, e precisam construir esse ambiente de 'bromance', de brodeiragem, que resvala na homoafetividade. É nesses testes, nesses meandros que eles vão construindo a própria masculinidade."

Falei de "BBB" dos homoafetivos no Twitter e um conhecido estranhou. Homens heterossexuais homoafetivos admiram, respeitam, idolatram, ouvem, trocam afeto, confiam, criam laços com outros homens. E transam com mulheres. A filósofa norte-americana Marilyn Frye afirma que a cultura heterossexual masculina é homoafetiva. Frye foi citada por Linn da Quebrada, numa explicação que deu às companheiras de quarto.

Um dos participantes disse que não levaria nenhuma mulher para dormir no quarto do líder, porque a filha não ia gostar. O que exatamente significa levar amigas para se divertir, dançar, brindar, trocar ideias, beber e, eventualmente, dormir, assim como se faz com os amigos em um reality show, que basicamente é feito disso? Por que mulheres sempre são vistas como seres sexuais, que despertam ciúme na companheira ou na filha do homem hétero e, por isso, devem ser evitadas?

Saí do reality dos parças e fui a Simone de Beauvoir (a que ponto chegamos, minha gente). Voltei à biografia da filósofa existencialista francesa escrita por Kate Kirkpatrick: "Ao analisar a história, Beauvoir viu que os seres humanos têm o hábito de observar o corpo dos outros e criar castas; que poderiam, às vezes, ser castas de escravos, com base em suas características físicas. Ninguém duvidava que fosse o caso no que diz respeito à raça; mas, perguntava Beauvoir, e quanto ao sexo? Ela argumentava que os homens definiam as mulheres como 'outro' e as relegava ao status de uma casta diferente: o segundo sexo."

Beauvoir se baseava em pensadores que entendiam o homem como a medida da humanidade, a norma. As mulheres são seres outros, cujas opiniões eram irrelevantes para as preocupações humanas. A filósofa respondeu a pergunta "O que é ser mulher?" com "Uma mulher é o que um homem não é". Homens se entendem como sujeitos livres e definem as mulheres por contraste a partir de si. Percebe isso nos participantes do "BBB"?

Ainda que eles possam ser caras bacanas, não é com mulheres que eles se aliam, com quem eles se juntam. Sabe como? Todos no ofurô, de mãos dadas, beijando uns aos outros, unidos pelo afeto, pelo respeito, pela cumplicidade. A celebração da masculinidade, impregnada de misoginia. O que é ser homem? É isso?

Me interessam mais os que ouvem mulheres, leem mulheres, admiram pensamentos de mulheres, se relacionam afetivamente com mulheres, são aliados nas lutas das mulheres, enxergam mulheres como iguais porque desejam essa igualdade. De modo que só me restou seguir o conselho dos intelectuais das redes sociais: desliguei a TV e fui cuidar da vida.

Para ler:

"Simone de Beauvoir - Uma Vida", de Kate Kirkpatrick, ed. Crítica.
"Tudo Sobre o Amor", de bell hooks, ed. Elefante.
"Confraria da Esquina", de Rolf Malungo, diponível neste link.

Marilyn Frye - ela não tem livros publicados em português, mas aqui, neste link, você encontra dois textos traduzidos.