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Nina Lemos

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Relato de mulher sobre caso com morador de rua é conto de terror machista

Sandra Mara Fernandes agradeceu o apoio de amigos e do marido, Eduardo, e disse que passou por um surto quando encontrou Givaldo - Reprodução/Instagram e YouTube
Sandra Mara Fernandes agradeceu o apoio de amigos e do marido, Eduardo, e disse que passou por um surto quando encontrou Givaldo Imagem: Reprodução/Instagram e YouTube

Colunista de Universa

02/05/2022 16h16Atualizada em 08/05/2022 10h20

Aconteceu em março de 2022. Enquanto Givaldo Alves de Souza, então um morador de rua, virava uma espécie de herói do Brasil por ter tido relações sexuais com uma mulher em um carro em Planaltina (DF), a comerciante Sandra Mara Fernandes, de 34 anos, mulher envolvida no caso, era levada amarrada para uma clínica psiquiátrica, onde foi diagnosticada com transtorno bipolar.

Depois de 15 dias na clínica, ela finalmente soube do que tinha acontecido. Quando se deu conta do que tinha feito, tentou se machucar. "Como mulher, comecei a ter nojo de mim. Tive uma crise em que me perfurei 28 vezes com uma caneta no punho esquerdo por não aceitar. Eu não queria aceitar que aquilo tinha acontecido realmente".

Os detalhes de sua luta e os ataques que vêm sofrendo desde que o caso se espalhou pelo país foram finalmente contados pela própria Sandra no domingo, em entrevista à Folha de S. Paulo.

A história parece um conto de terror machista. Um exemplo assustador de como a dor das mulheres é deixada de lado em prol do machismo barato. Sim, tem coisa mais tosca do que transformar um homem em situação de rua em herói porque ele teve relações sexuais com uma mulher bonita e de classe média?

Pois foi o que aconteceu. Enquanto Sandra viveu esse calvário (e ainda vive), ele melhorou de vida. Ganhou status de subcelebridade, espaço em sites e programas de TV para contar detalhes íntimos, talvez inventados (mas quem liga?) da relação que teve com a mulher.

Ele passou a ter um empresário, mudou para um apartamento de frente para o mar na Barra da Tijuca, área nobre do Rio de Janeiro, um presente do youtuber Diego Aguiar. Fez algumas presenças vips e vive de gravar mensagens personalizadas, que custam cerca de R$ 150. Quem paga por seu serviço quer uma mensagem do " mendigo do amor" quer fazer uma graça em ocasiões como pedido de casamento, aniversário, que tal?

Ter tido relações sexuais com uma mulher em situação de vulnerabilidade (ela estava em surto, e isso é manifestação de uma doença) é o suficiente para transformar um homem em herói.

Já a mulher, se não bastasse o sofrimento psíquico que ela sofria, tem a sua história contada (sem que ela fosse ouvida, até então), deturpada, sofre exposição na televisão e passa a sofrer ataques online.

No momento, como disse na entrevista, com a crise psicótica controlada, Sandra tenta retomar a sua vida. Mas teve que fechar sua loja de roupas, mudar de cidade. Pensa em abrir uma loja online, mas para isso tem que lidar com o horror dos ataques online.

"Ele me expôs como mulher, como ser humano. Então, ele acabou com a minha moral. Criaram perfis falsos em meu nome usando as minhas fotos. A população acreditou que tudo o que ele falou era verdade", desabafou.

Durante o Carnaval, Givaldo foi visto tentando entrar em um camarote do Carnaval. Sandra nem mais pode sair na rua, porque é xingada, junto com o marido e o filho.

Quando a história sobre o "mendigo sedutor" começou a circular, não era difícil imaginar que isso aconteceria, que Sandra seria atacada e viveria um inferno.

"Vivemos em uma sociedade machista e por isso tenho sofrido ataques. O que mais me dói nesses ataques é quando eu sou atacada por outras mulheres", disse.

Sandra tem toda razão. E qualquer pessoa que publicar artigo sobre o "mendigo sedutor" (sic) ou contratar seus serviços é cúmplice da enorme violência que Sandra sofre.

Qualquer pessoa está sujeita a ter surtos psiquiátricos. Poderia ser com uma de nós, com sua esposa, sua filha. Que esse horror sirva de lição. E que a dor de mulheres deixe de ser "rentável" para os homens.