Natalia Timerman

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Opinião

Antissemitismo parecia questão do passado, mas pela primeira vez sinto medo

Parecia exagero: meus tios justificavam que jamais votariam no partido tal porque seria composto por antissemitas, e eu pensava que era puro pretexto, desculpa que inventavam a si mesmos para optarem sem culpa pelos candidatos mais reacionários. O antissemitismo parecia questão do passado no Brasil, e cheguei a achar que aqui nunca tivesse chegado a existir de forma disseminada, apenas como caso isolado, como exceção; o medo que aparecia às vezes no fundo do olhar dos mais velhos da minha família parecia ser puro resquício, sobra sem sentido do que herdaram dos meus avós, vindos da Ucrânia, da Moldávia e da Lituânia no entreguerras fugindo dos pogroms.

Tanto é assim que em meu romance "As Pequenas Chances", lançado no agora tão longínquo agosto — porque uma guerra tem o poder de cindir o tempo, de decretar passado o que nem acabou de passar —, consta o seguinte trecho:

"Eu disse que não me lembrava de haver sofrido antissemitismo na vida. Ele se surpreendeu, mas não foi difícil chegarmos à conclusão de que não sofro e não sofri ameaça alguma porque sou branca, assim como a maioria dos judeus. Fui protegida do antissemitismo no Brasil pelo racismo antinegro. Eu tinha lido 'O mal-estar na civilização' fazia pouco tempo, havia comentado com o Eder sobre a grande sacada de Freud de que há, para cada sociedade, a necessidade de um inimigo (muitas vezes imaginário) em torno do qual essa sociedade chega a se organizar, e concluímos, no conforto da mesa de almoço, que o 'inimigo' já estava estabelecido no Brasil quando os judeus começaram a chegar: o outro por excelência eram os negros. A mim, branca, de olhos claros, judias, mesmo que pairem essas ameaças, jamais faltaram oportunidades por causa da minha raça".

Talvez eu achasse exagero, também, que fosse obrigada a passar por detector de metais para entrar na sinagoga que eu frequentava quando criança, e que sua fachada fosse protegida por estruturas de concreto que impedissem estacionar diante dela. Mas isso foi antes, antes da cisão do tempo. Foi antes de eu ler, não em livros de história, mas nas atualíssimas redes sociais e em bom português, a associação de judeus com ratos, e que judeus deveriam morrer; isso foi antes que eu lesse a notícia de que casas amanheceram pichadas com estrelas de Davi em Berlim, onde também uma sinagoga foi atacada, e que há a cada dia mais notícias de ameaças e ataques contra judeus e suas instituições.

Se esses exemplos não são evidência suficiente, pode ainda haver quem diga que eu poderia estar confundido antissemitismo com antissionismo: que conclamar ao desaparecimento de Israel não seria o equivalente a bradar pelo desaparecimento dos judeus. Diante de pessoas (dentre as quais amigos, escritores e pensadores que admiro) que defendem o Hamas, de que um dos líderes propôs semana passada matar judeus ao redor do mundo, talvez fosse inócuo dizer que sim, antissemitismo e antissionismo são diferentes, de fato conjuntos distintos, mas com grandes áreas de sobreposição. Afinal de contas, quase metade dos judeus do mundo vive em Israel, país criado porque, para além de uma tentativa de reparação moral, depois da Segunda Guerra Mundial os países da Europa não queriam receber em suas terras os sobreviventes judeus.

Muito me surpreendem os argumentos que defendem as terras de Israel (que nunca pisei) pertencerem apenas aos palestinos, se os judeus também habitavam a região e foram expulsos há quase dois mil anos. Muito me surpreendem as tentativas de reler a Bíblia atrás de certezas, os mapas absurdos em cuja legenda está escrito que Israel seria o câncer da região. Que judeus não teriam direito à autodeterminação política em um território que reivindicam parece ser, afinal, mais uma manifestação de antissemitismo.

Até há menos de um século os judeus tinham direitos negados onde quer que vivessem; reconhecer esse fato e legitimar seu pleito por aquelas terras não significa compactuar com o que o atual governo de Israel faz. As ações do governo de Benjamin Netanyahu perpetradas contra os palestinos são abomináveis desde antes da guerra, mas isso não significa necessariamente que Israel tenha que deixar de existir. Precisa haver outros caminhos para a paz.

As certezas não vêm e não podem vir em blocos, muito menos em uma situação como a atual. Um bloco de certeza: revolta, reiteração da acusação de genocídio porque Israel bombardeou um hospital, mas quando as evidências sugerem que o ataque não partiu de fora, mas de dentro, criam-se teorias da conspiração ou muda-se de assunto, porque a realidade simplesmente não se dobra às certezas fáceis e tantas vezes falsas. Não há metáfora mais evidente que essa: Israel é responsável por muitas das mortes de palestinos, que estão, sim, sendo massacrados, que sofrem, sim, um apartheid, mas não só Israel é responsável por essas mortes: as organizações terroristas no poder usam os palestinos de escudo e também os matam.

(Antes que os judeus me ataquem por usar o termo apartheid, abro este parêntese para dizer que a idea inicial deste texto era justamente questionar o uso de alguns vocábulos para descrever o que acontece agora: apartheid, entre outros, me parecia um termo exagerado. Depois de ter uma noção um pouco maior da restrição de direitos sofrida pelos palestinos na Cisjordânia, no entanto, reconheço que podemos chamar o que acontece lá por este nome se isso nos ajuda a dimensionar o horror, ainda que haja características específicas em Israel que diferem do que aconteceu na África do Sul.)

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Muito me surpreendem, também, os ataques que sofri porque afirmei pela primeira vez estar sentindo medo por ser judia. Medo: uma experiência subjetiva, cujo fundamento só pode ser atestado por quem sente. Mas alguns representantes das mesmas minorias que procuro defender a partir do que agora reconheço como minha judeidade (agradeço Ilana e Lia por esse reconhecimento), ao invés de empatizarem com o sofrimento alheio por conhecerem o próprio, chamaram de "mimimi", entre outras coisas, o que eu sentia.

Posicionar-se é importante, ainda que nenhuma manifestação isolada tenha o poder de modificar em nada a realidade da guerra. O problema é quando a realidade precisa fazer contorcionismos para caber nos rótulos que damos a ela. E também que as consequências antissemitas — e islamofóbicas, pois um extremo só alimenta o outro — continuarão em vigor, mesmo quando a guerra acabar.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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