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Cris Guterres

Democracia racial: a maior falácia de todos os tempos deste país

Colunista do UOL

04/08/2020 04h00

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O racismo brasileiro sempre foi marcado por um silêncio ensurdecedor. Um silêncio que grita por entre as imagens do descaso e que rejeita pessoas negras como dignas de existência. Foi através deste silêncio que o país conseguiu construir a maior falácia de todos os tempos, a democracia racial. Vendeu e ainda vende ao mundo a ideia de que aqui as relações entre brancos e negros e brancos e índios são harmoniosas e a miscigenação da população seria a maior herança desta cordialidade.

Abra seus olhos, permita-se enxergar. Ouça. Todos os dias pessoas negras estão tentando estilhaçar o silêncio pra dizer que não conseguem respirar.

O racismo é um processo político estrutural em que um determinado grupo sofre desvantagens sociais com relação a pessoas de grupos majoritários. Nessa estrutura, para tornar o racismo algo natural em nossa sociedade, foram utilizadas ferramentas que ao longo dos anos criaram uma segregação não oficializada entre indivíduos brancos e não-brancos. Num cenário onde o Brasil foi o último país a abolir a escravidão, a imprensa brasileira foi e é instrumento de manutenção da política racial.

Temos assistido a algumas tentativas de redenção. A maioria delas construída por conveniência e pegando de carona às margens do levante que se anuncia. Algumas são verdadeiras e tentam de maneira legitima abrir espaço para uma modificação da estrutura colonial que ainda temos instauradas.

Uma destas iniciativas está sendo promovida por Universa, canal pelo qual escrevo esta coluna. Universa vem há algum tempo promovendo uma válida discussão das questões raciais permitindo que mulheres negras ocupem seu espaço de fala não só como entrevistadas, mas também como produtoras de conteúdo. Claro que ainda estamos caminhando rumo à mudança, mas já vemos luzes que se acende no horizonte.

Uma das últimas inciativas foi o documentário "A Longa História do Racismo Estrutural no Brasil", onde Alexandra Loras, Jaqueline Conceição, Liliane Rocha, Obirin Odara e Rosa Luz apresentam argumentos sobre a maneira como este processo histórico racial tem se articulado na sociedade e como o coronavírus está desvendando a desigualdade entre brancos e negros no país.

A crise de coronavírus é humanitária e global, mas as grandes vítimas são pessoas que dependem da formulação de políticas públicas de eficácia e não são atendidas. Tanto no Brasil como em outros países do mundo, os negros formam o grupo de pessoas que serão mais atingidas pelo vírus e pelos efeitos econômicos danosos por ele gerado. Segundo mapa divulgado recentemente pela Prefeitura de São Paulo, negros têm 62% mais chances de contraírem a doença uma vez que estão aglomerados por um projeto político colonial que culminou na multiplicação das favelas e cortiços.

O racismo brasileiro é camuflado, porém preciso em seus resultados. Consegue manter a população negra excluída em todas as esferas. Seja na esfera educacional com a ausência nas salas de aula das universidades públicas, seja no ambiente profissional, seja nos cargos eletivos ou mesmo em cargos de liderança e gerenciamento. Os negros não estão. As regras foram criadas para que eles não estivessem.

Ao contrário do que a sociedade não negra brasileira insiste em afirmar, o racismo não é um problema dos negros. Entender-se parte do processo decolonial é passo importante para ouvir os gritos silenciados em mais de cinco séculos de exploração. Como diz no documentário Alexandra Loras, ex-consulesa da França e palestrante sobre diversidade e empoderamento feminino: se você não se incomoda com vidas que foram arrancadas de suas terras, das suas famílias, da sua humanidade, então você é parte do problema.

Em 1963, durante uma entrevista, o intelectual estadunidense James Baldwin levantou uma questão que precisa ser respondida por todos os indivíduos brancos deste país que não conseguem enxergar a existência do racismo. Baldwin diz que é necessário procurar em seu coração o porquê foi necessário criar um negro. Porqueu não sou um negro, eu sou um ser humano.