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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Nise Yamaguchi se aproveita da pauta feminista e ignora política que apoia

A oncologista Nise Yamaguchi  -  Jane de Araújo/Agência Senado
A oncologista Nise Yamaguchi Imagem: Jane de Araújo/Agência Senado
Rachel Serodio

Colaboração para Universa

22/06/2021 04h00

No Brasil, a primeira Assembleia Constituinte, de 1823, não contou com a participação de mulheres. Em 1934, foram duas. Com a redemocratização, dos 559 lugares, apenas 26 eram femininos. Já no final dos anos 90, um grupo, pejorativamente denominado de lobby do batom, queria interferência ativa na Constituição de 1988. Pedia igualdade de direitos e condições nas relações trabalhistas, civis e familiares. Mulheres que, ainda que não se reconhecessem assim, eram feministas.

Junto delas, há outros marcos nacionais: a Lei Maria da Penha é a terceira melhor do mundo na defesa das mulheres e o Brasil é signatário da CEDAW e da Convenção Belém do Pará, tratados internacionais para erradicação da violência de gênero.

Ainda assim, esforço e avanço não nos livram de respostas conservadoras, inclusive vindas de mulheres. A base de lutas históricas em nada se revela no depoimento de Nise Yamaguchi na CPI, que é, antes de tudo, lamentável. Médica negacionista e defensora do tratamento precoce e da imunidade de rebanho, ela se esquiva das respostas técnicas, nega a ciência e sob, o manto da neutralidade, avaliza a demora das vacinas que salvariam vidas desde dezembro no país.

Uma bancada composta em sua maior parte de homens não hesitou em interpelá-la. Mas em que contextos os apontamentos se deram? Em busca da verdade, dado que Nise mente? Ou por exercício de silenciamento misógino, já que Nise é uma mulher? Ficamos com a primeira indagação.

Nise, contudo, ciente das escolhas políticas que fez, embasada na conquista das garantias e direitos das mulheres, argumenta que os senadores Omar Aziz, presidente da CPI da Covid, e Otto Alencar abusaram do direito com condutas ilegais, injustas, inadequadas e desnecessárias.

A oncologista se respalda no o artigo 5º da Constituição Federal para pedir uma ação indenizatória. Ela poderia ter buscado as garantias constitucionais para não depor na CPI. Tem advogados para mover a máquina e levar aos Tribunais as impressões de maltrato que sofreu. Mas de fato sofreu? Houve efetivamente abuso de direitos e posturas misóginas contra Nise? Pelas imagens vinculadas dos anais da CPI, não.

O feminismo não é uma pauta individualizada ou de um grupo apenas. Não é mais crível, ainda que se valha do argumento de gênero quando se trata das escolhas profissionais e políticas de uma pessoa.

Nise é quem deve ser responsabilizada por isso. Escolheu defender um projeto de morte que negou a vacina e teorias sem respaldo científico, entretanto, se apropria da pauta da luta histórica de mulheres de forma individualizada, desconsiderando a política que apoia

É leviano, sob o argumento de violência de gênero e misoginia, em um país que mata mulheres como este, que Nise se aproveite deste contexto. Precisamos relembrar as pautas históricas das lutas de mulheres acima resumidas. Onde se encaixa Nise nessas pautas? Que manutenção de vidas e da ciência que ela defende? Com qual projeto de poder ela compactua?

Nise é o efeito dos paradoxos das lutas. É o efeito do patriarcado que usa as pautas identitárias a seu favor. Quem a defende sob o manto do feminismo distorce a essência de uma pauta séria e cara

Não é crível e possível que se desqualifique a luta nesses termos. Precisamos redirecioná-la e é urgente. Não é gênero que deve moderar Nise, mas ética. Fato é que ela está ao lado da destruição do que fora até hoje duramente conquistado, amparada por um discurso moralista e religioso dos que hoje estão no poder.

Nise faz parte de um projeto político de poder que nega a ciência, que não acredita na educação, que avalizou criminalmente as condutas em Manaus e, mais, que não está alinhada à luta de mulheres no Brasil

Isso não significa que mulheres estejam impedidas de defendê-la, mas está óbvio que a médica se posiciona ao lado daqueles que combatem os avanços dos direitos das mulheres. Ao invocar gênero, Nise deturpa e pretende esconder o principal: que foi desmascarada na CPI.

Que o sistema de justiça, que muito se esquiva de pautar gênero, tenha sobriedade — não apenas para enxergar o lado da história que Nise está, mas também de não compactuar com a artimanha identitária perpetrada por aqueles permitiram a morte de mais de 500 mil de brasileiros.