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Por que Apple paga multa por 'aposentar' iPhone nos EUA, mas não no Brasil?

iPhone X com tela inicial de aplicativos - Unsplash
iPhone X com tela inicial de aplicativos Imagem: Unsplash

Aurélio Araújo

Colaboração para Tilt, de São Paulo

07/07/2023 04h00Atualizada em 08/07/2023 09h26

Toda vez que a Apple anuncia uma nova atualização de iOS, os donos de iPhones antigos já sabem: o sistema operacional, cérebro do celular, deixará de funcionar em seus aparelhos. É o que vai acontecer com o lançamento do iOS 17, que não rodará nos iPhones 8, 8 Plus e X, lançados em 2017.

Ao fazer isso, a Apple "aposenta" celulares: sem a atualização, continuam a funcionar, mas não recebem recursos de segurança da empresa e, com o tempo, vão perdendo o suporte para apps terceiros. Conhecida como obsolescência programada (quando uma empresa prejudica um produto velho para forçar a comprar de um novo), a tática rende processos milionários contra a empresa. Mas por que essa estratégia não é penalizada no Brasil?

Durante o escândalo do "Batterygate", a Apple fechou acordos judiciais com entidades de defesa do consumidor, em países como Chile (US$ 3,4 milhões), França (US$ 27 milhões) e Estados Unidos (US$ 113 milhões). Assim, evitou que as ações, mais polpudas, prosseguissem.

Isso ocorreu após a empresa admitir que tornava os iPhones antigos mais lentos quando atualizações de iOS chegavam a eles. A empresa argumentou que a medida era necessária para preservar a vida útil dos dispositivos.

No Brasil, contudo, a Apple obteve uma série de vitórias legais não chegou a ser condenada na Justiça pela prática. Foi o resultado, por exemplo, de uma ação movida pelo IDBI (Instituto Brasileiro de Política e Direito da Informática), em 2018. Derrotada em duas instâncias, a ação pedia indenização de R$ 986,7 milhões e que a empresa arcasse com o preço dos iPhones atingidos pelo "Batterygate" no país.

Em 2020, o IBDI recorreu a STJ e STF. Procurado, Sergio Palomares, advogado do IBDI, não deu entrevista, dizendo que os processos estão sob segredo de justiça.

Lacuna na lei

Um dos entraves que os consumidores enfrentam no Brasil é a ausência de definição precisa na legislação sobre o que é obsolescência programada. Felipe Carteiro, advogado e especialista em direito digital, explica que o Código de Defesa do Consumidor (CDC), criado em 1990, prevê algumas definições relativas a hardware (ou seja, produtos físicos), mas não a software, caso do iOS.

O CDC diz que fabricantes e importadores devem assegurar "oferta de componentes e peças de reposição enquanto não cessar a fabricação e a importação do produto". Estabelece ainda que essa oferta deve ser mantida "por período razoável de tempo" após a fabricação e importação acabar. A lei não crava quanto seria esse período.

O "período razoável" varia de acordo com o produto, comenta Luã Cruz, pesquisador de telecomunicações e direitos digitais do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor). Carteiro exemplifica: o mercado automotivo estabeleceu como regra prazo de cinco anos.

Se essa interpretação for levada para o mercado de smartphones, há um problema para a Apple: até 2020, a empresa vendia no Brasil o iPhone 8, justo o modelo aposentado pelo iOS 17.

Vamos ter consumidores que podem ter comprado esse modelo há três anos e claramente estão sendo, de certa maneira, lesados, porque as funcionalidades do produto vão ser reduzidas de uma maneira precoce e injusta. Você vê gente que tem um iPhone por muito mais tempo e consegue usar ele de maneira completa Luã Cruz, do Idec

O pesquisador vê na conduta um problema que pode ser interpretado como prática abusiva pela Justiça ou pelo Procon. Dependeria, é claro, que consumidores se sentissem lesados e buscassem essas instâncias. Procurado por Tilt, o Procon-SP afirmou "não possuir registros de reclamações específicas sobre o problema".

Limitações técnicas

A Apple se baseia em duas justificativas para não oferecer atualizações de sistema operacional a celulares antigos: segurança e performance. A empresa já informou a Tilt que, ao agir dessa forma, quer "garantir a melhor experiência do consumidor que usa um iPhone" e "manter a segurança de atualizações do dispositivo".

Para Carteiro, os argumentos fazem sentido do ponto de vista jurídico.

Aparelhos mais velhos não possuem novos componentes físicos que vão sendo integrados às novas gerações de telefones. Como o sistema operacional é o cérebro do celular, é como se seu corpo não acompanhasse a evolução tecnológica. Felipe Carteiro, especialista em direito digital

Para Cruz, a limitação técnica é razoavelmente compreensível, mas ressalta que comercializar produtos seguros é um dever expresso no CDC. "É um ponto espinhoso, nebuloso, quando essa atualização conflita com a opacidade técnica do hardware, como ocorre com um novo software."

Ele aponta ainda que o Idec se incomoda com o "discurso público" da Apple, que se colocando como empresa preocupada com o meio ambiente, mas estimula a compra de novos iPhones.

Mercado imaturo e conservador

Afinal, por que até mesmo nos EUA, país onde nasceu, a Apple precisou fechar acordo e pagar multa, mas aqui não? Para Carteiro, outros países possuem uma "maturidade de mercado" que o Brasil ainda não alcançou. Ele aponta a descentralização de órgãos reguladores como uma das causas, citando os diversos Procons e agindo nas esferas estaduais, além da Secretaria Nacional do Consumidor atuando em âmbito federal.

"Querendo ou não, você tem um aspecto descentralizado que foi criado inicialmente com o intuito de melhor atender a população, mas que acaba tirando a força de um órgão regulador máximo lutando ou discutindo com uma empresa do porte da Apple", explica.

No entanto, o advogado está otimista quanto a mudanças. Cita, por exemplo, o entendimento do Judiciário brasileiro de que o celular não pode ser vendido separadamente do carregador, e a multa administrativa imposta pela Senacon. O fato de o mercado de smartphones ser relativamente recente ainda pesa. "O direito sempre vai estar atrás da tecnologia", justifica Carteiro, que crê que o resultado possa ser diferente quando, por exemplo, o caso chegar até uma das instâncias superiores da Justiça.

Cruz também cita a questão dos carregadores como um avanço de entidades como Procon e Senacon contra a Apple. "O problema é que essas decisões são administrativas, né, então elas podem ser contestadas na Justiça", explica. "E aí, na Justiça, a gente não tem uma posição consolidada."