Pega a visão

Com óculos inteligentes, Apple quer (de novo) inventar um setor e depender menos de seu carro-chefe, o iPhone

Bruna Souza Cruz e Marcella Duarte De Tilt, em Cupertino (EUA)* e em São Paulo

Dentro de um local subterrâneo com design minimalista, a alguns metros de um prédio circular que ocupa monumentais 640 campos de futebol, um grupo executava um ritual curioso. Munidas de câmeras fotográficas e celulares, dezenas de pessoas se acotovelavam para captar fotos e vídeos de estranhos objetos ostentados em pedestais.

No alto deles, os aparelhos: cara de óculos de ski, visor espelhando tons de roxo, 5 mil tecnologias patenteadas embaixo do chassi, 12 câmeras, seis microfones, telas internas do tamanho de selos postais e uma promessa:

Da mesma maneira que o Mac nos introduziu a computação pessoal e o iPhone trouxe o computador móvel, o Vision Pro introduz a 'computação espacial' Tim Cook, CEO da Apple

A cena acima presenciada por Tilt dentro do Teatro Steve Jobs, na sede da Apple em Cupertino, no estado norte-americano da Califórnia, marca o anúncio dos novos óculos de realidade mista Vision Pro, a aposta mais ousada da empresa desde o iPhone. Isso porque:

  • O novo produto faz parte de um segmento que está longe de decolar apesar da hype;
  • Terá de disputar espaço com fortes concorrentes, como Microsoft e Meta;
  • Será vendido por US$ 3.499, entre 12 e três vezes e meia o valor dos produtos rivais.

Ainda assim, a Apple costuma impulsionar e reinventar os mercados em que entra. Se você tem um smartphone no bolso e um relógio conectado no pulso, uma das responsáveis é ela.

O que está em jogo agora, porém, não é só a venda de um aparelho. Se a visão da Apple se concretizar, o que nós entendemos por realidade está prestes a mudar. Abaixo, contamos o por quê.

A nova revolução dos computadores vestíveis?

Oito anos separam a Apple da última vez em que se arriscou em uma nova categoria de produto. Se em 2023, os "óculos futuristas" arrancaram aplausos de uma plateia entusiasmada (composta, em sua maioria, por desenvolvedores), em 2015 a bola da vez era o Apple Watch.

Um complexo computador usado como se fossem óculos, o Vision Pro é um passo adiante na estratégia inaugurada pelo Watch. Quando o relógio foi lançado, os computadores vestíveis eram coisa de ficção científica. Hoje, a Apple lidera um mercado que vende 180 milhões de peças, forçou as icônicas Tag Heuer e Montblanc a se mexer e cria funções cada vez mais presentes na vida das pessoas —se hoje, já salva vidas com o monitoramento cardíaco, em breve, o Watch vai acompanhar a saúde mental de seus usuários e agir como guia em trilhas ao ar livre.

Já os headsets de realidade virtual não saíram do chão em mais de 10 anos. Desde 2012, quando o Oculus Rift foi anunciado, dezenas de concorrentes empolgados surgiram —e morreram.

O mais marcante deles foi o Google Glass, de 2013: parecido com óculos comuns, mas com câmera e projetor de imagens embutidos na haste e em uma das lentes. A ideia era que as pessoas os usassem em atividades cotidianas para receber informações digitais sobrepostas à realidade. Eleitos a invenção do ano, não empolgaram e foram um dos maiores fracassos do Google.

Ano passado, foram vendidas só 10 milhões de headsets do tipo no mundo, segundo a Gartner, que espera resultado ainda pior em 2023. Mas é isso mesmo que a consultoria aponta como oportunidade para a Apple.

Embora os headsets de realidade virtual, aumentada e mista já existam há algum tempo, ainda é um mercado emergente. A indústria está à procura de aplicativos matadores e casos de uso que ajudarão a gerar interesse e valor no mercado Jon Erensen, analista de tecnologias e tendências da Gartner

  • Oculus Quest (Meta)

    Mais vendida e líder em realidade virtual, a linha acabou de ganhar um novo representante, o Quest 3, que tem poderes de realidade mista. Não vendidos oficialmente no Brasil, os aparelhos são feitos pela Oculus, fundada em 2021 e adquirida pelo Facebook por US$ 2 bi em 2014.

    Imagem: Reprodução/ Twitter/@SadlyItsBradley
  • Playstation VR (Sony)

    Voltada para jogos de videogame imersivos em realidade virtual, a linha de aparelhos ganhou uma atualização, quando a Sony lançou o VR2 no início do ano por US$ 549. No Brasil, sai por R$ 4.499.

    Imagem: Rodrigo Lara
  • HoloLens (Microsoft)

    É o mais similar ao dispositivo da Apple, por mesclar realidade mista e interação por gestos no ar. Ainda assim, não pegou para o consumidor final. Por isso, é usado por indústrias, órgãos militares, instituições médicas e de educação. Lançado em 2019 por US$ 3.500, o HoloLens 2 chegou ao Brasil apenas em 2023.

    Imagem: Microsoft
  • Varjo XR-3 (Varjo)

    Mais um a prometer uma experiência imersiva de realidade mista com alta qualidade, o aparelho foi lançado há alguns meses e oferece grande campo de visão e resolução ?do olho humano?. Tem câmeras e sensores de última geração, como os da Apple, mas é ainda mais caro, por US$ 6.495.

    Imagem: Canaltech

O usuário da Apple é diferente, é muito cativado pela marca. O iPhone pode ser bem caro para os brasileiros, mas muita gente se empenha para comprar. Os produtos da Apple são aspiracionais, e esse movimento é importante, de criar um ímpeto. Quero ter essa Ferrari, quero ter esse iPhone, quero ter esse Vision Pro, só porque é legal

Reinaldo Sakis, Diretor de Pesquisa e Consultoria de Consumer Devices da IDC Brasil

O peso da maçã

A Apple tem uma gigante para destronar. Líder do segmento, a Meta investiu bastante no projeto: US$ 100 bilhões e o próprio nome (antes chamada de Facebook, mudou para Meta a fim de incorporar em seu DNA o metaverso).

A seu favor, a empresa possui a grife. Ainda que não tenhamos visto a figura de maçã nele, o Vison Pro leva no design a pegada Apple: vidro reluzente, moldura em alumínio escovado (lembra o iPhone 6), buraquinhos para saída de ar quente (como um mini 'ralador de queijo' do Mac Pro) e uma coroa digital seletora (como a do Apple Watch). E há outras armas menos evidentes como:

Capacidade de envolver o consumidor:

A Apple consegue prender as pessoas dentro de seu ecossistema, com os diversos produtos integrados, algo que a Meta não tem. Se eu fosse comprar um óculos, teria de ser o da Apple, porque vou me conectar com tudo que já tenho, com o iPhone, o iPad, com os dados de saúde do relógio Junior Borneli, fundador da escola de inovação Startse

Timing:

A Apple é boa em sentir o mercado e o produto que ela tem, e sempre dá um passo na hora certa. O momento me parece ideal, pois há uma convergência de várias tecnologias, com o uso da IA, a disseminação do 5G e do wi-fi 6. E o mercado está estagnado, falta um produto que atraia. O que a Apple tem e que talvez a Microsoft não tinha quando lançou o HoloLens é uma gama extensa de conteúdos e apps já existentes, para iPhone e iPad, que são compatíveis com os óculos. Isso pode seduzir muita gente Antonio Carlos Sementille, professor da Unesp e especialista em realidade virtual e aumentada

Metaverso, é você?

Dispositivos de realidade virtual estão diretamente ligados ao conceito de metaverso, um mundo digital que pode ser acessado somente usando algum tipo de óculos tecnológicos. Com letra maiúscula, é um projeto da Meta, de Mark Zuckerberg.

Provavelmente por isso, a Apple não usa o termo. O chefão Tim Cook sequer apareceu usando o Vision Pro até agora — talvez para evitar piadas e comparações com o concorrente.

Em vez disso, a empresa se concentra em disseminar a ideia da computação espacial, a integração de elementos gráficos a áreas do mundo real com o auxílio de um aparelho. E a própria Apple indicou o que é possível fazer:

  • Filmes: como em um cinema particular, é possível ver imagens 3D e ouvir áudio espacial;
  • Cenas em 3D: dá para acessar momentos eternizados em imagens que se mexem, como se estivessem vivas;
  • Games: jogar partidas integradas com o Apple Arcade, usando um controle compatível.

Já há parceiros importantes como a Disney, que deve oferecer uma versão do Disney+ no Vision Pro; Hideo Kojima, criador do jogo "Metal Gear Solid"; Cisco; Adobe, dona de marcas como Photoshop e Premiere; Microsoft e Unity, dos games "Monument Valley", "Pokemon Go" e "Cuphead".

Além de computação espacial, a Apple fala em "experiência imersiva", um termo bem mais empolgante do que "realidade mista", amplamente usada pela indústria.

Muitas realidades

  • Virtual (Virtual Reality ou VR)

    Significa estar imerso em um mundo totalmente digital. Ou seja, tudo que você vê e ouve é gerado por computador. Pode ser um ambiente fantasioso ou bem parecido com o mundo real, como o metaverso. É preciso, necessariamente, de um headset, de preferência com controladores de movimento, para navegar. O PS VR, por exemplo, permite uma experiência imersiva nos jogos.

  • Aumentada (Augmented Reality ou AR)

    Integram elementos digitais ao mundo real. Não há necessidade de equipamentos especiais, basta o smartphone ou tablet. Uma das aplicações mais populares é o jogo Pokémon GO. É utilizado por diversas marcas para criar provadores virtuais de roupas, calçados, produtos de beleza e móveis. O Google também oferece algumas experiências com animais, objetos e lugares na Busca.

  • Mista (Mixed Reality ou MR)

    VR e AR podem caminhar juntas e se complementar, como no caso do óculos da Apple. É um conceito novo, que dá um passo além na realidade aumentada, mas não te prende em um mundo todo virtual. Assim, pessoas podem interagir com objetos digitais 3D, como se fossem parte do ambiente real, sem a intermediação dura da tela do smartphone, e se manter conectados à vida real.

O Vision Pro por dentro

Para se destacar neste novo mercado, a Apple foca na qualidade da experiência: amplo campo de visão, imagem fiel com altíssima densidade de pixels, áudio espacial, capacidade de navegar entre o mundo físico e digital com facilidade e uma forma de resposta a gestos e movimento dos olhos sem igual.

Um recurso de diferenciação chave é a capacidade de ajustar seu nível de imersão ao usar o Vision Pro. Isso é único e algo. Outra habilidade exclusiva é o rastreamento ocular e de gestos manuais para controlar o Vision Pro. Este diferencial me lembra a introdução do toque no iPhone diante do uso das canetas, que prevaleciam na época Jon Erensen

Para executar isso, o Vision Pro tem:

  • 12 câmeras
  • 5 sensores
  • 6 microfones
  • 2 alto-falantes para som espacial
  • 2 telas micro-OLED 4K, do tamanho de um selo postal, uma para cada olho, totalizando 23 milhões de pixels
  • 1 processador M2: o mesmo usado nos Macs mais novos.
  • 1 processador R1: especialmente desenvolvido para o Vision Pro, para lidar com os dados dos sensores

Esse poder de processamento faz com que o aparelho responda rapidamente aos movimentos da cabeça. A alteração do que é exibido acontece em 12 milissegundos, um oitavo da duração de um piscar de olhos.

O produto é muito interessante, uma peça de engenharia e tecnologia bastante sofisticada. Fiquei impressionado com a qualidade do que foi mostrado, a quantidade de sensores, a resolução dos monitores. É um produto bem superior, à frente dos concorrentes.

Antonio Carlos Sementille, Professor da Unesp e especialista em realidade virtual e aumentada

Andrew Kelly/Reuters e Robert Galbraith/Reuters Andrew Kelly/Reuters e Robert Galbraith/Reuters

Cook x Jobs

A Apple não tem a tradição de ser pioneira, mas costuma esperar o momento certo para agir. iPhone, iPad, Mac e iPod não foram os primeiro smartphone, tablet, computador pessoal e tocador de MP3 player. Mas foram icônicos. Em comum, foram concebidos por Steve Jobs, fundador da empresa e visionário do design, falecido em 2011.

Depois da sua morte, a Apple tomou um rumo diferente, com mudanças nem sempre visíveis para os clientes —como investimentos na cadeia produtiva e acordos comerciais. A gestão de Tim Cook, atual CEO, foca mais no negócio —e muitas vezes é criticada pelos movimentos lentos e conservadores nos produtos (introduziu, por exemplo, a tela infinita no iPhone, a partir do modelo X, de 2017).

Por isso, pode soar estranho o lançamento de um produto totalmente novo, em um mercado de realidade virtual que ainda não é consolidado. Mas o momento financeiro é propício. Após uma queda no último ano, a Apple vive um momento de alta. Aproxima-se novamente do marco histórico de US$ 3 trilhões (R$ 15 trilhões) de valor de mercado, graças a um aumento na venda dos iPhones.

No caso dos smartphones, sucesso não significa, necessariamente, ser líder de vendas. No primeiro trimestre de 2023, o iPhone representou 21% de todo o segmento dos celulares inteligentes. Mas foi o responsável por 50% da receita gerada e 82% do lucro. Ou seja, todas as outras empresas juntas venderam 79% dos aparelhos e ficaram com 18% do lucro.

A Apple pode não ser a primeira, mas é muito rápida em perceber aquilo que pode fazer sentido, em criar algo com design diferente que atraia a atenção das pessoas. E acho que ela conseguiu. Mais que um óculos, a empresa parece estar criando um modelo de negócios a partir da realidade mista, por exemplo, trazendo a Disney e os desenvolvedores de jogos

Junior Borneli, fundador da escola de inovação Startse

E o futuro?

Produto para entretenimento? Substituto de celulares e tablets? Ferramenta de trabalho? A Apple não definiu o propósito do Vision Pro.

E é proposital, afinal ela terá de convencer importantes participantes de muitos setores a aderirem ao aparelho para construir aplicações. Só assim conseguirá enriquecer o ecossistema para seduzir consumidores, que terão de desembolsar US$ 3,5 mil (R$ 17,1 mil).

Da mesma forma que a gente não precisa de uma televisão 8K, a possibilidade de sucesso só surge quando a utilidade de algo é justificada. Ninguém pagará US$ 3 mil apenas pelos óculos. Mas a tecnologia tem potencial enorme. No entretenimento, na medicina, na educação. Isso não depende só do dispositivo, mas de todo um ecossistema, das conexões e dos softwares Reinaldo Sakis

De forma resumida, é assim que Borneli, fundador da Starse, explica o desafio: "A Apple precisa nos convencer que este não é mais um daqueles gadgets com pouca aplicação prática. Será que vou de fato usar ou só é algo legal de ter?"

Mas a receita você já viu outras vezes:

A Apple é muito boa em criar produtos caríssimos, acima da média do mercado, e fazer com que todo mundo tenha desejo de comprar.

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