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Lives na cracolândia: vídeos que 'vendem' a tragédia engajam e dão dinheiro

Live mostrando a situação de usuários de drogas na cracolândia foi transmitida no TikTok - Reprodução/ Twitter
Live mostrando a situação de usuários de drogas na cracolândia foi transmitida no TikTok Imagem: Reprodução/ Twitter

Simone Machado

Colaboração para Tilt, em São José do Rio Preto (SP)

16/05/2023 04h00

Um novo tipo de conteúdo vem ganhando as redes sociais nas últimas semanas: são transmissões ao vivo da cracolândia, no centro de São Paulo, que expõem a vulnerabilidade de pessoas que frequentam o local.

Os influenciadores filmam das janelas dos prédios ou da rua o movimento do fluxo, riem da situação dos usuários de drogas que andam de um lado para o outro desorientados, brincam de jogar moedas ao atingir certo número de seguidores e espalham fake news.

Os vídeos têm milhares de espectadores e funcionam tanto para ganhar seguidores e likes quanto para aumentar a monetização dos canais. A reportagem encontrou duas dessas lives: uma na plataforma TikTok e outra no YouTube.

Na primeira, uma jovem filma a situação da janela de um prédio. Durante a gravação, ela diz que, se atingir a marca de 10 mil seguidores, jogará moedas para as pessoas que estão na rua. Ela ainda acrescenta que algumas moedas não teriam muito valor para os usuários, já que eles receberiam um auxílio de R$ 700 do governo, chamado 'bolsa crack' — o que não é verdade.

A transmissão ao vivo atingiu a marca de 700 mil curtidas e a influenciadora alcançou 10,7 mil seguidores. Como prometido, ela arremessou moedas na rua, o que teria gerado tumulto.

No fim de semana, o perfil da influenciadora não estava mais disponível na plataforma.

Em outra live, dessa vez no YouTube, um influenciador digital, com 13 milhões de inscritos em seu canal, foi à cracolândia e transmitiu ao vivo sua experiência no local. Segundo ele, a live foi um desafio proposto por uma amiga.

Com as roupas e a pele sujas de carvão e com um cigarro em mãos, o influenciador anda pelas ruas do local, em meio ao fluxo. A live teve 39 minutos de duração e 1,5 milhão de visualizações.

Por que isso atrai tanta gente?

O psicanalista Antônio de Barros Junior, especialista em psicologia social nas redes sociais, lista alguns pontos importantes para entender o interesse na vulnerabilidade humana:

A tragédia é algo que traz horror, mas também atrai. Algumas seguem esse tipo de live pelo fascínio pela morte e pelo declínio que pode levar à morte --que é o que causa interesse na cracolândia
Antonio de Barros Junior

O prazer e interesse por tragédias e pelo sofrimento alheio é observado desde a Antiguidade, quando os gregos inventaram o teatro e a tragédia, e os romanos criaram o chamado 'pão e circo' —com arenas de gladiadores. Grande parte dos seres humanos gosta de sofrer e torcer em companhia, mesmo que virtualmente.

Muitos gostam desse tipo de conteúdo porque ele traz à tona sentimentos. Ao se projetar em alguma tragédia que não necessariamente é sua, você se sente compreendido.

As redes sociais despertam a necessidade de autoafirmação e de chamar a atenção, então os donos das lives também buscam likes, seguidores, uma forma de deixar sua marca... e também de ganhar dinheiro.

Há uma exacerbação do aspecto narcísico em todos nós, e as redes sociais deram voz e rosto a todo mundo. A gente mergulha nessa fantasia de querermos ser especiais, aceitos e termos nossas ações curtidas pelas pessoas

Engajamento traz mais dinheiro

Cada plataforma tem suas próprias regras sobre produção de conteúdo e remuneração, mas elas costumam ser balizadas por duração dos vídeos, números de seguidores e engajamento.

Michel Ank, CEO da Lastlink, empresa especializada em vendas digitais, explica qual é a forma de ganhar dinheiro nas plataformas:

No TikTok, os influenciadores precisam ter pelo menos mil seguidores para transmitir ao vivo e ganhar com isso. Eles têm acesso ao chamado fundo de criadores, que paga por vídeos de acordo com as interações.

Nas transmissões ao vivo, os espectadores compram presentes virtuais e enviam ao criador.

No YouTube, é preciso ter mil inscritos e 4.000 horas de visualização de vídeos nos últimos 12 meses ou 10 milhões de visualizações públicas em vídeos shorts para ser aceito no programa de parcerias.

Os criadores podem ganhar dinheiro com anúncios em seus vídeos ou em transmissões ao vivo.

Por que as redes sociais monetizam isso?

O TikTok disse, em nota, que segue o compromisso de combater comportamentos de exploração humana e de proteger a integridade da plataforma e da comunidade. A plataforma foi questionada sobre por que a live da cracolândia não foi derrubada no momento em que acontecia e qual a remuneração do influenciador, que recebeu dinheiro ao vivo, mas não houve posicionamento sobre este ponto.

Estamos comprometidos em defender a dignidade humana individual e garantir que nossa plataforma não seja usada para que se aproveitem de pessoas vulneráveis, proibindo e removendo conteúdos que violem nossas Diretrizes da Comunidade sempre que identificados
TikTok

O YouTube explicou que possui regras e remove conteúdos para combater violência, discurso de ódio, assédio, bullying virtual, entre outros temas.

Removemos todo conteúdo que promova a violência ou o ódio contra indivíduos ou grupos, a desumanização de pessoas, insultos raciais, religiosos ou de qualquer outro tipo e estereótipos para incitar ou promover o ódio. As políticas são aplicáveis a vídeos, descrições, comentários, transmissões ao vivo e qualquer outro produto ou recurso do YouTube.
YouTube

Ainda segundo o YouTube, o vídeo citado pela reportagem não viola as Diretrizes da Comunidade e, por isso, não foi removido da plataforma.

Analisamos o vídeo denunciado e não conseguimos identificar nenhuma violação de nossas Diretrizes da Comunidade, que são as regras que definem o que pode ou não ser compartilhado no YouTube. Proibimos vídeos que incentivam atividades perigosas ou ilegais e levamos em conta vários fatores ao analisar esse tipo de conteúdo. Tomamos muito cuidado ao aplicar nossas políticas e tentamos permitir o máximo de conteúdo possível no site e ainda garantir que as regras sejam seguidas
YouTube, em nota