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Como apagão do Facebook expôs a exclusão digital dos brasileiros

Planos que oferecem acesso grátis aos apps do Facebook limitam usuário, diz pesquisadora - Getty Images
Planos que oferecem acesso grátis aos apps do Facebook limitam usuário, diz pesquisadora Imagem: Getty Images

Abinoan Santiago

Colaboração para Tilt, em Florianópolis

15/10/2021 04h00

A pane global que tirou do ar por várias horas o Facebook, Instagram e WhatsApp expôs mais um problema envolvendo a desigualdade no Brasil: a exclusão de acesso às redes de internet de banda larga fixa. O apagão provou como os brasileiros viraram reféns de ofertas de planos de celular que não descontam das franquias de dados os acessos aos aplicativos vinculados ao Facebook. Uma vez que essas plataformas falham, o uso da rede se torna extremamente restrito.

"Com a queda dos serviços dos aplicativos na pane, milhões de pessoas no Brasil tiveram o seu único contato com a internet inviabilizado", afirma Renata Mielli, pesquisadora e doutoranda em Comunicação na USP (Universidade de São Paulo).

Em entrevista a Tilt, a especialista, que coordena o Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé, explicou que o acesso gratuito às redes sociais oferecidos por várias empresa, mesmo que elas não tenham créditos para o uso padrão da internet, no caso dos planos pré-pagos, criou uma falsa impressão de que os brasileiros podem navegar livremente pela web.

Porém, na prática, acontece o contrário, já que as plataformas oferecidas gratuitamente restringe a pessoa ao acesso de aplicativos comandados por uma única empresa, comandada por Mark Zuckerberg, diz a pesquisadora.

"A percepção dos usuários é de que o Facebook, WhatsApp e Instagram são a própria internet porque acessam por esses aplicativos. Mas quando você navega neles e clica em um link de uma matéria, por exemplo, que o leva para fora da plataforma, o próprio aplicativo avisa que haverá o desconto dos dados do plano, fazendo a pessoa pensar duas vezes e até mesmo desistir de sair dos aplicativos para outros", explica.

De fato, o acesso por meio da telefonia móvel é de longe a principal preferência dos brasileiros, de acordo com o último relatório de panorama setorial, divulgado em junho pela Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações). O primeiro semestre de 2021 fechou com 242,5 milhões de linhas móveis ativas, sendo 76,4% com acesso à internet 4G, 12,5% com 3G e 11,1% com 2G.

Na pandemia, houve um acréscimo de 17 milhões de linhas com internet nos últimos 12 meses, impulsionado pela subida de 15% na quantidade de assinaturas 4G.

Quanto à internet banda larga fixa, o segundo trimestre de 2021 terminou com 37,1 milhões de contratos ativos, 601 mil a menos que nos três primeiros meses do ano.

Confira a seguir os principais pontos de atenção levantados sobre o problema pela pesquisadora:

Tilt: Como você avalia a pane global do Facebook e suas consequências no cotidiano dos brasileiros?

Renata Mielli: A pane do Facebook ocorreu, em partes, em função de um erro dentro de um sistema autônomo da empresa. Diferentemente de outros provedores, o conglomerado possui estrutura própria que conecta o Facebook globalmente à internet.

Renata Mielli, coordenadora do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Renata Mielli, coordenadora do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé
Imagem: Arquivo Pessoal

Ele faz a sua própria gestão do seu DNS [Sistema de Nomes de Domínios, em português. É um protocolo que relaciona o endereço "nominal" de um site ou aplicativo]. Isso revela a forte concentração monopolista do Facebook, que extrapola a concentração de uma aplicação de internet, pois também controla parte da infraestrutura que garante esse acesso aos usuários através de duas aplicações.

Pela perspectiva de política de comunicação, o desejável para uma economia regulatória mais democrática da estrutura é que quem produz não pode também deter domínio da infraestrutura.

Tilt: O que essa pane revelou sobre o Brasil?

Mielli: No Brasil, o Facebook se mostrou pioneiro na tentativa de construir um modelo de negócio que fizesse as pessoas não acessarem a internet de maneira comum, como conhecemos, digitando a URL do site, mas sim a partir da plataforma.

Isso começou quando se desenvolveram parcerias com as empresas de telecomunicações, que são as que ofertam as estruturas de conexões à internet, para que seus aplicativos tivessem acesso gratuito no tráfego pela rede.

Facebook, Instagram e WhatsApp ficaram fora do ar por horas - Reuters - Reuters
Os quatro aplicativos mais baixados na última década pertencem todos à empresa de Mark Zuckerberg: Facebook (1º lugar), Facebook Messenger (2º), WhatsApp (3º) e Instagram (4º)
Imagem: Reuters

Somado a isso, no Brasil, o estado optou por massificar o uso da internet pelo celular ao invés de universalizar a banda larga fixa de qualidade para todos. Essa estratégia fez o Facebook gerar um ambiente de captura de usuários para dentro dos seus aplicativos.

A esmagadora maioria dos brasileiros acessa a internet pelo celular e pelos planos pré-pagos. Nessa modalidade, quando uma pessoa usa o smartphone para acessar a internet, não é descontado do seu pacote de dados o tráfego no Facebook e demais aplicativos da empresa.

A maioria dos brasileiros não tem acesso residencial. Antes da pandemia, o acesso ocorria nas escolas, universidades ou no trabalho. Com a covid-19, as pessoas perderam esses espaços forçando o acesso pelo celular. O que antes era uma exceção virou regra, em decorrência dessa exclusão digital do Brasil.

Tilt: O Facebook ajudou a criar então uma espécie de falsa sensação de acesso à internet?

Mielli: A percepção dos usuários é de que o Facebook, WhatsApp e Instagram são a própria internet porque acessam por esses aplicativos. Mas quando você navega neles e clica em um link de uma matéria, por exemplo, que o leva para fora da plataforma, o próprio aplicativo avisa que haverá o desconto dos dados do plano, fazendo a pessoa pensar duas vezes e até mesmo desistir de sair dos aplicativos para outros.

Com a queda dos serviços dos aplicativos na pane, milhões de pessoas no Brasil tiveram inviabilizado o seu único contato com a internet.

Isso demonstrou a completa dependência desse tipo de modelo negócio que, aparentemente é um benefício, mas que acaba sendo perverso porque as pessoas ficam confinadas em um ambiente restrito. Quando acontece uma pane como essa, fica mais explícito o grau de dependência.

Tilt: Quando você fala em exclusão digital, se refere ao acesso à internet banda larga fixa?

Mielli: Em partes, sim. Temos hoje uma desigualdade de acesso muito grande no país em função desse modelo de negócio e o aumento da miséria e da pobreza.

A pessoa incluída digitalmente à internet nesse modelo pré-pago restrito às plataformas privadas, na verdade, está excluída digitalmente.

Exemplifico com o auxílio emergencial. Para ter acesso ao serviço, era preciso fazer um cadastro da internet nos sites governamentais. Se você utiliza um pacote limitado para acessar ambientes gratuitos, não consegue acessar um direito que é disponibilizado.

O mesmo acontece com as aulas online. Elas não foram desenvolvidas por aplicativos gratuitos. Quem dependia desses planos das operadoras, teve dificuldade de acesso.

Tilt: Foi esse modelo de negócio em parceria com as empresas de telecomunicação que fez o Facebook dar tão certo no Brasil?

Mielli: Sim, mas não apenas aqui, abrangendo também países do terceiro mundo. Em 2013, o Facebook lançou o Internet.Org, por exemplo, com objetivo de conectar comunidades carentes sem acesso à internet através do aplicativo. Mas como é que isso pode ser chamado de ".org" se não é um acesso livre à internet?

Tilt: E como resolver esse gargalo em relação aos usuários de internet pelo celular?

Mielli: É um desafio não apenas brasileiro, mas internacional e deve ser enfrentado pela discussão da quebra do monopólio dessas plataformas.

Do ponto de vista do Brasil, precisamos avançar em mecanismos de regulação dessas empresas monopolistas. Qualquer uma deve cumprir regras para funcionar aqui. Quem vai ressarcir no Brasil os milhares de comerciantes que sofreram com o apagão do Facebook? É preciso haver leis que toquem nisso.

Também precisamos avançar em regulações de políticas públicas para garantir acesso à internet de qualidade para todos em um momento que estamos à beira do leilão do 5G. Ou seja, damos passos rumo à melhoria da rede e deixamos à margem milhões de brasileiros que poderiam usar este serviço.

Por último, necessitamos construir nossas próprias plataformas, incentivando startups ou aplicativos que possam ser de interesse local para que não fiquemos tão dependentes dessas grandes empresas.

É uma gama de ações e não apenas uma para tentar amenizar toda essa nossa dependência. O apagão do Facebook nos faz refletir sobre todas essas questões.