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STF derruba direito ao esquecimento, mas tese não morreu, dizem juristas

Estúdio Rebimboca/UOL
Imagem: Estúdio Rebimboca/UOL

Lucas Carvalho

De Tilt, em São Paulo

11/02/2021 17h19Atualizada em 12/02/2021 11h53

O STF (Supremo Tribunal Federal) decidiu hoje, por maioria de votos dos ministros, que não existe "direito ao esquecimento" na lei brasileira —isto é, nenhum cidadão tem direito a ter informações apagadas da mídia com o passar do tempo. Casos assim devem ser tratados individualmente pela Justiça.

Para juristas ouvidos por Tilt, isso ainda pode ser contestado. O termo cabe para justificar decisões judiciais mesmo que não tenha se tornado "norma", segundo o STF. Um novo julgamento, sobre o Marco Civil da Internet, sem data para acontecer, deve voltar a debater a responsabilidade de mecanismos de busca, como o Google, pelo conteúdo de terceiros.

O julgamento, que durou quatro dias, terminou assim:

  • Contra: Dias Toffioli (relator), Kassio Nunes Marques, Alexandre de Moraes, Rosa Weber, Marco Aurélio Mello, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia, Marco Aurélio, Gilmar Mendes e Luiz Fux (presidente da corte)
  • A favor: Edson Fachin

O ministro Luís Roberto Barroso se declarou suspeito e abriu mão de votar.

"Num país de triste desmemória, discutir e julgar o esquecimento como direito fundamental de alguém pode impor o silêncio de fato, ou um ato que pode ser de relevância de interesse público parecer um desaforo", argumentou a ministra Cármen Lúcia, em seu voto.

Ricardo Lewandowski a seguiu, dizendo que não existe direito ao esquecimento universal e que pedidos de remoção de informação devem ser avaliados caso a caso. "O direito ao esquecimento (...) só pode ser apurado caso a caso (...) de maneira a sopesar-se qual desses dois direitos fundamentais deve ter prevalência: o direito à intimidade ou à liberdade de expressão."

Gilmar Mendes afirmou que é possível combinar o direito fundamental à privacidade com a liberdade de informação. "Deve ser permitida a divulgação jornalística, artística, ou acadêmica de fato histórico distante do tempo (...) desde que presentes o interesse histórico, social e público", disse.

Marco Aurélio defendeu a liberdade de imprensa, dizendo que "o sigilo, uma vez quebrado na origem, chegando ao veículo de comunicação, ele não prevalece, porque o veículo de comunicação tem o dever de retratar o fato que lhe chegou às mãos".

Por fim, o presidente Luiz Fux declarou que "o direito à informação e à liberdade de imprensa são valores que superam o direito ao esquecimento."

Entenda o caso

O direito ao esquecimento virou alvo de debate no STF durante o julgamento de uma ação da família de Aida Curi, mulher que foi estuprada e assassinada em 1958 no Rio de Janeiro, contra a TV Globo. Os familiares relatam que o crime foi alvo de cobertura intensa da imprensa à época e protestam que, quase 50 anos depois, a história tenha voltado aos holofotes no programa "Linha Direta Justiça" em 2004.

A família Curi pedia indenização da Globo, dizendo que a emissora extrapolou seu direito à liberdade de expressão ao explorar um assunto que trazia dor aos descendentes de Aida. A Globo, por sua vez, argumenta que o caso teve projeção nacional e havia interesse público na história. O recurso se arrastou pelo Judiciário até chegar ao STF.

"O direito da população de receber informações sobre os fatos de interesse público é garantido pela Constituição Federal. Qualquer tentativa de apagar o passado é uma forma de censura", disse a Globo em nota enviada a Tilt.

O que tem a ver com o Google?

Desde 2014, um "direito ao esquecimento" garantido pela União Europeia, em um processo contra o Google, obrigou a empresa a criar um formulário para as pessoas pedirem para ter menções ao seu nome apagadas dos resultados de busca, sem precisar recorrer à Justiça.

No Brasil e em outros cantos do mundo, o Google só remove menções a pessoas de seu motor de busca quando é obrigado pela Justiça. Foi o que aconteceu em 2018, quando o STJ (Superior Tribunal de Justiça) concedeu o direito ao esquecimento a uma promotora de Justiça do Rio de Janeiro.

"O Brasil precisa do direito ao esquecimento? Entendo que não. Por sua vagueza e imprecisão conceitual, o termo tem sido largamente aplicado sem limites ou balizas", explica Caio Oliveira, especialista em direito digital e autor de um livro sobre a polêmica.

O Google não foi citado no processo contra a Globo, mas atuou no julgamento do STF como amicus curiae (amiga da corte), instituição que voluntariamente ajuda os juízes a tomarem uma decisão. O documento de 50 páginas que o Google entregou à corte diz que o direito ao esquecimento não deveria ser acatado porque "não encontra respaldo na lei vigente no país". O parecer foi compartilhado pela empresa com Tilt.

Críticos do direito ao esquecimento argumentam que ele poderia ser usado por políticos ou outras pessoas públicas para apagar notícias negativas da internet. É o que diz a Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo). A organização diz que há mais de 5 mil ações na Justiça brasileira exigindo a remoção de informações da internet, segundo dados do seu projeto CTRL+X.

Francisco Brito Cruz, diretor do InternetLab, acredita que o STF acertou ao negar o direito ao esquecimento. "Muitos desses casos não necessariamente seriam coisas que nós temos que esquecer mesmo", diz. "Isso não está na nossa Constituição, não foi aprovado em lei nenhuma. Firmar tese disso, eu acho, seria o Supremo ir longe demais."

Para Carlos Affonso Souza, diretor do ITS-Rio (Instituto de Tecnologia & Sociedade do Rio de Janeiro), o recurso "daria a todos o poder de editar o passado, de controlar o que pode ser dito sobre você. Isso parece tentador em tempos de hiperconexão e de cultura do cancelamento."

Adriele Ayres Britto, advogada do Instituto Vladimir Herzog, que esteve como amicus curiae no julgamento, afirma que, em vez de direito ao esquecimento, o que deve ser celebrado é o "direito à memória". "Eu não preciso invocar isso para demonstrar que houve violação à minha honra, intimidade e privacidade. Não há necessidade de que algo seja esquecível para ser indenizável."

O perigo passou?

Para Cruz, a novela ainda não acabou. "Estamos discutindo uma tese que, na Europa, foi formulada a partir da proteção de dados pessoais e atingia diretamente o Google. Aqui no Brasil é um caso de imprensa", diz.

Ou seja, a responsabilidade do Google de remover links após pedidos pessoais, sem ordem judicial, pode voltar à pauta do STF. A corte vai julgar um processo que questiona um trecho do Marco Civil da Internet sobre a responsabilidade de plataformas da web sobre o conteúdo publicado por terceiros. O caso está na fila do Supremo desde o ano passado e ainda não tem data para ser discutido.

Neste julgamento, os ministros terão que decidir se plataformas como Google, Instagram e Twitter podem responder judicialmente por conteúdo postado pelo público. O Marco Civil da Internet diz que não. Mas uma mulher com conta no Facebook diz que a empresa deve pagar a ela uma indenização pelos danos morais que sofreu ao ser vítima de perseguição na rede social. O relator da pauta é Dias Toffoli, o mesmo relator no caso do direito ao esquecimento.