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Toffoli defende que 'direito ao esquecimento' é incompatível com a Constituição

O ministro do STF, Dias Toffoli, durante solenidade no Palácio do Planalto em 2020 - Marcello Casal JrAgência Brasil
O ministro do STF, Dias Toffoli, durante solenidade no Palácio do Planalto em 2020 Imagem: Marcello Casal JrAgência Brasil

Paulo Roberto Netto

São Paulo

04/02/2021 19h39Atualizada em 04/02/2021 21h01

Sem tempo, irmão

  • Dias Toffoli é relator do caso e primeiro de oito ministros do STF a votar
  • Julgamento que começou na quarta deve estender até a próxima semana
  • Decisão do STF pode afetar maneira como Google responde a pedidos de remoção de conteúdo

O ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal, defendeu que o chamado 'direito ao esquecimento' é incompatível com a Constituição. Para o ministro, não se pode conceder a alguém 'o poder de obstar, em razão do tempo, a divulgação de fatos verídicos' em meios de comunicação. A proposta ainda deverá ser discutida pelos demais ministros para a fixação do entendimento da Corte.

O STF julga desde quarta, 3, se existe no País o 'direito ao esquecimento', no qual uma pessoa pode pedir à Justiça para proibir a exibição ou publicação de um fato antigo, ainda que verdadeiro, sob a justificativa de preservação da intimidade. O caso tem repercussão geral e poderá criar precedentes em relação à liberdade de acesso à informação e à atividade da imprensa, além de modular as decisões judiciais sobre o assunto em todo o País.

"É incompatível com a Constituição Federal a ideia de um direito ao esquecimento assim entendido como o poder de obstar, em razão do tempo, a divulgação de fatos verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação análogos ou digitais", afirmou Toffoli, ao propor a tese que baseia seu voto. "Eventuais excessos ou abusos da liberdade de expressão devem ser analisados caso a caso a partir dos parâmetros constitucionais relativos à proteção da honra, imagem, privacidade e personalidade em geral".

Toffoli é relator do caso de Aida Curi, assassinada em 1958 no Rio de Janeiro. O crime teve ampla cobertura midiática à época e, em 2004, foi reconstituído pelo programa Linha Direta, da TV Globo. Inicialmente, a família de Curi solicitou que o episódio não fosse ao ar e, após a sua exibição, acionou a Justiça em busca de indenizações e pelo 'direito ao esquecimento' do caso.

Em um longo voto que foi iniciado ainda na quarta-feira, 3, e ocupou toda a sessão desta quinta, 4, Toffoli destacou que não caberia ao Judiciário criar um 'direito ao esquecimento' pois ele poderia restringir a liberdade de expressão e os 'direitos da população de serem informados sobre fatos relevantes da história social'.

"Tal possibilidade equivaleria a atribuir, de forma absoluta e em abstrato, maior peso aos direitos da imagem e da vida privada em detrimento da liberdade de expressão, compreensão que não se compatibiliza com a ideia de unidade da Constituição", afirmou. "Deve-se priorizar o complemento da informação em vez de sua exclusão. A retificação de um dado, em vez de sua ocultação. O direito de resposta em lugar da proibição ao posicionamento".

O ministro também comentou o caso concreto, destacando que, apesar de considerar o 'Linha Direta' um programa de 'extremo mau gosto' e considerar que 'felizmente ele saiu do ar', a reconstituição do crime contra Aida Curi não violou nenhum direito à privacidade ou imagem da vítima. Pelo contrário. Para Toffoli, a recordação do crime colocou em evidência o feminicídio que ainda atinge as mulheres brasileira.

"Casos como o de Aída Curi, Ângela Diniz, Daniella Perez, Sandra Gomide, Eloá Pimentel, Marielle Franco e, mais recentemente, da juíza Viviane Vieira, entre tantos outros, não podem e não devem ser esquecidos", frisou. O ministro negou o pedido de indenização solicitado pela família de Aida Curi contra a Globo.

Toffoli foi o primeiro e o único a votar na ação. A sessão foi suspensa pelo presidente do STF, ministro Luiz Fux, e será retomada na próxima quarta, 10, com a leitura dos votos dos demais ministros. Sem conceito definido, o 'direito ao esquecimento' foi tratado por Toffoli como a solicitação para exclusão de informações antigas, ainda que verdadeiras, sob a justificativa de defesa do direito da privacidade ou imagem.

O debate, porém, esbarra na liberdade de expressão, direito à informação e à atividade da imprensa. Na quarta, 3, organizações que discutem estes temas se manifestaram no Supremo pelo risco de que o direito ao esquecimento, uma vez reconhecido, seja usado por políticos e figuras públicas do Poder para retirar conteúdos negativos sobre suas carreiras do ar por meio de ações judiciais.

Para o advogado Carlos Affonso Souza, sócio da Rennó Penteado Sampaio Advogados e diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS), o voto de Toffoli 'está de olho no momento em que o Brasil - e a América Latina - querem lembrar do passado, e não criar ferramentas para esquecer ou ocultar o que se passou'.

"O chamado direito ao esquecimento pode ser facilmente abusado por políticos buscando limpar sua ficha na Internet e já tivemos até parque de diversões querendo impedir a imprensa de noticiar um acidente em nome desse pretenso direito", observou. "Esperamos que o plenário possa confirmar essa tese que em muito fortalece o respeito à liberdade de expressão em tempos em que não faltam meios inovadores para suprimi-la".

A Procuradoria-Geral da República (PGR) se manifestou contra o reconhecimento do direito ao esquecimento. "Se o que hoje é livre de se dizer, o tempo passará e essa liberdade caducará? Como se ela tivesse prazo de validade em uma sociedade livre e democrática?", questionou o vice-procurador-geral Humberto Jacques de Medeiros. "Mudar a verdade, mudar a realidade é assaz delicado, assaz perigoso. O direito de impor o silêncio sobre o já ocorrido é extremamente violento e de difícil controle".

O advogado que representa a família Curi, Roberto Algranti Filho, afirmou na quarta que o 'Linha Direta' sobre o caso Aida Curi foi 'muito pouco cuidadoso' e que a família teria o direito de não ter o crime relembrado sob risco de causar 'perpetuação de uma dor'. Segundo ele, o argumento de que o reconhecimento do direito ao esquecimento atingiria a atividade da imprensa não se sustentaria.

"Refuto o argumento baseado de que políticos tentarão apagar seus malfeitos. Eles poderão até tentar, mas dificilmente conseguirão o direito ao esquecimento dada a relevância social e política do controle das atividades políticas por parte da imprensa", frisou.

O advogado Gustavo Binenbojm, que representou a Globo, afirmou ao Supremo que o reconhecimento do direito ao esquecimento equivaleria a uma 'amnésia coletiva'. "A Constituição prevê a liberdade de informar e de ser informado, independente de censura ou licença de quem quer que seja, de vítimas ou algozes, de autoridades públicas ou de pessoas privadas", afirmou.