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Em breve, cantores que já morreram vão 'gravar' músicas inéditas

Marcel Lisboa/UOL
Imagem: Marcel Lisboa/UOL

Thiago Varella

Colaboração para Tilt

25/12/2020 04h00

Elis Regina morreu aos 36 anos e deixou aquela sensação triste de que poderia ter gravado músicas ainda mais incríveis caso não tivesse partido tão cedo. Mas, com aquela ajudinha marota da tecnologia, quem sabe a Pimentinha não possa cantar sucessos inéditos quase 40 anos depois da sua morte?

Quer dizer, não vai ser exatamente a cantora, mas um computador, com o uso da Inteligência Artificial (IA), que vai recriar a voz, o sotaque, a prosódia, o timbre, o estilo e tudo mais que deixava Elis tão única. E não estamos tão distantes assim dessa possibilidade.

Recentemente, o grupo DADABOTS, que na verdade é formado por CJ Carr e Zack Zukowski, músicos e cientistas da computação, fez Frank Sinatra cantar Toxic, de Britney Spears, com a ajuda da rede neural Jukebox, da empresa OpenAI.

O resultado final ainda não é perfeito, mas é satisfatório. Apesar da baixa qualidade do som, é possível entender tudo o que o Frank Sinatra fake canta e, por mais que a voz não seja exatamente idêntica ao do cantor, o timbre e os trejeitos lembram muito o Old Blue Eyes.

Na Coreia do Sul, um programa de TV diz ter usado IA para recriar a voz do cantor Turtleman, que morreu em 2008, com 37 anos. Ele apareceu como holograma cantando uma música ao lado de dois membros da banda em que o cantor já falecido era vocalista. Um outro programa de TV do país recriou a voz do cantor Kim Kwang-suk, que morreu em 1996 aos 31 anos.

Não se sabe exatamente qual o algoritmo usado, nem se as vozes dos cantores mortos foram recriadas exclusivamente com o uso de IA.

Professor da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), Giordano Cabral é um dos pioneiros na composição de músicas utilizando IA no Brasil. Ele participou do projeto Flow Machines, do cientista francês François Pachet, um dos papas do uso da IA na música. Cabral foi responsável, entre outras coisas, por articular uma base de música brasileira na plataforma que gerou composições inéditas a partir de padrões de artistas e estilos.

Segundo Cabral, que foi orientado por Pachet em seu doutorado feito da Universidade Paris 6, na França, já é possível, por meio da IA, fazer uma máquina compor uma música inédita ao estilo de qualquer artista conhecido. Além disso, o computador é capaz de tocar essa música de forma totalmente realista, imitando instrumentos diversos como guitarra, piano, bateria, ou seja lá o que for.

"A gente já consegue criar uma obra, a partitura, a harmonia e até a letra com um bom banco de dados. Além disso, com a vantagem de já saber que a música criada não é plágio, já que o sistema não copia as frases das canções, mas apenas o padrão", explicou Cabral, que também é fundador empresa de computação musical Daccord.

Em 2016, por exemplo, os pesquisadores compuseram a música "Daddy's Car", que emula o estilo dos Beatles e que foi composta por computador, mas gravada e aprimorada por humanos.

O computador já consegue compor músicas, tocar as canções, misturar estilos, recriar obras já feitas, mas ainda existe uma última barreira a ser quebrada: a voz humana. A máquina consegue criar um coral de vozes cantando "ahhhh" de maneira perfeita. Mas, cantar mesmo, ainda não é muito real.

"Um nível de realismo que ainda não se chegou foi o da voz. Isso acontece porque é preciso levar em conta o timbre, a prosódia e o sotaque. Mas estamos muito próximos de alcançar isso", disse Cabral.

Segundo o professor, existem muitos fatores que a IA precisa levar em consideração na hora de recriar a voz de um cantor famoso. São elementos como afinação, como o cantor divide ritmicamente a música, o sotaque para cada fonema, entre outras tantas variáveis.

"Para processar tudo isso exige muito esforço, mas é só uma questão de trabalho. Ou seja, precisa de gente que gaste muito dinheiro com isso com muita gente trabalhando nos subproblemas. Estamos perto disso", afirmou.

Para Joana Mariz, coordenadora do curso de Pós-graduação em Pedagogia Vocal e professora de Canto da Faculdade Santa Marcelina, existe um fator muito humano que vai ser difícil para qualquer máquina emular.

"O som da gente é a manifestação sonora de algo que está acontecendo no corpo. Isso é algo psicofísico. O canto é sobre comunicação e comunicação tem uma intenção por trás, mas as máquinas não têm intenção, não têm personalidade, opinou.

A "gravação" de músicas inéditas usando vozes de artistas que já morreram também suscita outra questão importante, a dos direitos do uso da voz. Segundo Gabriel Couto, advogado especialista em propriedade intelectual e sócio da NDM Advogados, a voz é um direito pessoal, ligado ao indivíduo.

"O ideal é pedir autorização para a pessoa dona da voz, já que é um direito individual de cada um. Mas, se a pessoa já morreu, é preciso obter a autorização dos parentes de primeiro grau dela. É uma situação igual a dos pedidos de biografia de pessoas já falecidas. Esse tipo de autorização visa preservar o direito individual", disse.

Ou seja, em um futuro próximo, para ouvir Elis Regina cantar uma música composta ao estilo do Belchior, para, por exemplo, reeditar a parceria de sucesso do passado, vamos depender da autorização da família dela. Porque a IA promete fazer todo o resto.