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Com evolução da tradução automática, precisaremos aprender outras línguas?

Marcel Lisboa/UOL
Imagem: Marcel Lisboa/UOL

Thiago Varella

Colaboração para Tilt

02/11/2020 04h00

Na história bíblica da Torre de Babel, os homens tentaram alcançar o céu e Deus os puniu criando diferentes idiomas. De lá para cá, a Humanidade tenta desfazer esse problema criando idiomas artificiais como o esperanto, universalizando o inglês ou usando a tecnologia. Neste último caso, avançamos tanto nela que não precisamos mais estudar idiomas?

Além do superusado aplicativo Google Tradutor, capaz de converter línguas em tempo real com câmera ou microfone, já temos fones de ouvido que traduzem conversas simultaneamente. Exemplos são os Pixel Buds (do próprio Google) e o Timekettle M2, que saiu do papel graças a uma campanha de financiamento coletivo.

A primeira versão dos Pixel Buds sofreu com críticas há cerca de três anos; sua tradução não era tão ágil ou com a devida qualidade em situações de muito ruído. Mas com a versão lançada neste ano, o recurso recebeu avaliações mais positivas, como a da revista Wired. Em um teste em uma conversa inglês-espanhol, o aparelho "funciona muito bem", diz o texto.

Já o Timekettle M2 ainda tem seus problemas. No começo deste ano, veículos o testaram. Ele funciona em três modos diferentes de tradução; a simultânea é uma delas. Segundo a Apple Insider, em um ambiente barulhento havia "atrasos significativos nos tempos de tradução e reduz a precisão". Ainda assim, diz a análise, "funcionou com mais frequência do que não". É um sinal de que a tendência é um caminho sem volta.

Tradução neural

Vamos tentar entender esse salto que a tradução automática deu nos últimos anos. Quando o Google Tradutor surgiu, o método usado era o estatístico. Ele aprendia sequências de palavras no português e o seu equivalente no idioma a ser traduzido.

Isso costumava trazer erros de concordância como "os meninos vai à escola". Em 2016, o tradutor mudou o método para o sistema neural, que trabalha com aprendizagem. As informações são computadas como se fossem neurônios artificiais. Desta maneira, o contexto é visto de maneira mais ampla e os erros de concordância são muito mais raros. Em resumo, aprende cada vez mais à medida que é mais exigido em situações diferentes.

Com o avanço na técnica, mais empresas têm interesse neste mercado. O Facebook, por exemplo, divulgou nesta semana seu algoritmo M2M-100, o primeiro capaz de traduzir entre 100 idiomas sem usar o inglês como informação principal.

Adeus escolas de idiomas?

Ok, então a tradução automática já pode ser amplamente usada sem medo de erros absurdos e continua em evolução. Mas daí a afirmar que o ensino de idiomas vai ser substituído, ou que os tradutores humanos vão ter que procurar novos empregos, vai um longo caminho. Aliás, esse dia pode nem mesmo chegar.

Para Helena Caseli, doutora em Ciência da Computação e Matemática Computacional e professora da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), a impressão que dá é que os modelos neurais já conseguem entender a língua.

"Os modelos neurais conseguem apenas reproduzir e generalizar, mas um sistema não é capaz de aprender o significado. A rede neural só aprende a palavra", explicou Caseli, uma das principais autoridades brasileiras quando o assunto é tradução automática.

Quem tem um filho sabe como funciona esse mecanismo. Quando estão aprendendo a falar, as crianças precisam relacionar o som da palavra à imagem dela. Não adianta descrever um carro a um bebê de dois anos; é preciso apontar, fazê-lo entrar no veículo, enfim, fazer uma relação multimodal com a palavra.

"Já até existem pesquisas com aprendizado multimodal em máquinas. Mas é preciso ainda mais. Tem coisas que a gente nunca vai conseguir fazer a máquina aprender porque não tem vivência", disse Caseli.

Segundo a professora, é ruim ser pessimista demais em relação à tradução automática, assim como também não é bom ser muito otimista.

Por que não trabalhar junto?

Eliane Fernandes Azzari, doutora em linguística aplicada pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e professora pesquisadora da PUC Campinas, já ajudou a formar muitos tradutores que hoje trabalham no mercado. Para ela, a tecnologia se tornou algo inevitável neste aprendizado.

"Eu não acredito e não vejo essa relação entre tradutor humano e de máquina de maneira dicotômica e polarizada. Na formação, os tradutores precisam saber como os programas podem ajudar —inclusive as traduções automáticas— e que podem sempre auxiliar o tradutor. Aliás, a tradução nunca vai prescindir o trabalho de pós-produção, de leitura atenta", disse.

Para ela, é preciso discutir, por exemplo, como os bancos de dados das redes neurais de tradutores automáticos são alimentados. Há, hoje, uma grande discussão em relação à inteligência artificial ter um viés racista ou sexista. E isso também pode ser refletido na tradução.

Caseli também vê a tecnologia como uma aliada e não um substitutivo. "Em alguns casos, como textos muito técnicos e específicos, já é possível usar a tradução automática. De certo modo, estamos perto de um uso confiável dessa tecnologia. Mas ainda é um auxílio. Em raros casos, é um fim", disse.

Ou seja, a tradução automática existe para facilitar nossa vida, claro. Mas, quem é poliglota sabe o prazer que é descobrir uma cultura nova batendo um bom papo com um estrangeiro no idioma dele. Mesmo que seja na base do "nós vai, nós volta". Esse prazer, desculpem, nenhum fone de ouvido ultratecnológico vai reproduzir.