Diogo Cortiz

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Opinião

Paradoxo da IA: vale mudar o mundo com algo que tem enorme custo ambiental?

Como vamos atuar nas mudanças climáticas depende da forma como definimos o problema. É uma questão com muitos pontos de contato. Um desafio científico, uma questão sociopolítica, de desenvolvimento econômico e que também ganha um viés tecnológico.

A inteligência artificial surge como uma promessa que pode ser determinante para a construção de um futuro mais sustentável, mas ao mesmo tempo preocupa por demandar uma vasta quantidade de recursos que pode eventualmente acelerar ainda mais os efeitos negativos.

Do lado positivo, a IA pode ter uma ação eficiente em diversas perspectivas:

  • Ajuda a entender as mudanças climáticas e suas consequências no ecossistema.
  • Simular e prever eventos com mais precisão.
  • Otimizar os sistemas e infraestruturas para reduzir perdas.
  • Acelerar descobertas científicas que poderão ajudar na sustentabilidade e em novas fontes de recursos.

Se tem uma coisa que a IA faz melhor do que nós, humanos, é ler uma vasta quantidade de dados e encontrar padrões que muitas vezes são invisíveis para nós. Assim, uma situação que antes era de total imprevisibilidade, ganha contornos mais visíveis com ferramentas de previsão mais sofisticadas.

No fim do ano passado, a equipe de pesquisa do Google Deepmind publicou um artigo na revista Science em que apresenta o GraphCast, um modelo de IA avançado capaz de fazer previsões meteorológicas de médio prazo com precisão sem precedentes. O GraphCast prevê as condições climáticas com até 10 dias de antecedência de forma mais precisa e muito mais rápida do que o padrão ouro da indústria.

O modelo ainda pode fornecer alertas antecipados de eventos climáticos extremos, prever a trajetória de ciclones com grande precisão, identificar rios atmosféricos associados ao risco de inundações e prever o início de temperaturas extremas.

A NVIDIA tem o Earth-2, uma plataforma de gêmeo digital climático da Terra que permite a visualização e simulação do tempo em uma escala sem precedentes que pode ser combinada com dados proprietários para previsões muito antecipadas de eventos climáticos.

São dois exemplos que ilustram a potencialidade da tecnologia em nos dar mais possibilidades de entender e atuar na realidade. Só que para tudo isso acontecer, a IA demanda uma quantidade imensa de recursos naturais que incluem:

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  • matéria-prima usada para a produção de chips;
  • eletricidade usada para ligar todo esse poder computacional;
  • água para resfriar o calor que milhões de processadores geram.

Para se ter uma ideia do consumo de energia, um relatório recente publicado neste ano pela AIE (Agência Internacional de Energia) aponta que, impulsionada pelo avanço da IA, a demanda global dos datacenters pode dobrar até 2026. No total, há hoje mais de 8 mil datacenters no mundo, sendo 33% deles localizados nos Estados Unidos, 16% na Europa e quase 10% na China.

A perspectiva é que modelos de IA fiquem cada vez mais complexos, o que aumenta a demanda por recursos energéticos. O consumo global estimado em 2022 é de 460 terawatts-hora (TWh), mas deve chegar a mais de 1000 TWh em 2026. Essa demanda é aproximadamente equivalente ao consumo de eletricidade do Japão.

Embora os algoritmos e os hardwares estejam ficando mais eficientes, o custo ambiental de treinamento e inferência dos modelos de IA é elemento que não pode estar fora da equação quando discutimos sobre o futuro da IA, até porque podem ter outros fatores ocultos na discussão.

É exatamente para isso que o professor Shaolei Ben, da Universidade da Califórnia, chama a atenção. Em um artigo publicado pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), ele argumenta que o consumo de água é um fator frequentemente ignorado nas discussões sobre IA e meio ambiente.

De acordo com sua pesquisa, a poluição do ar e a emissão de carbono são os custos ambientais mais conhecidos da IA, mas ela também é bastante sedenta por água, consumindo uma quantidade significativa do recurso de duas principais formas:

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  • dentro dos datacenters para resfriar os servidores e evitar superaquecimento.
  • fora dos datacenters e, de uma maneira menos direta, na geração de eletricidade.

Para se ter uma ideia da dimensão deste consumo, toda vez que você faz por volta de 10 a 50 perguntas para o ChatGPT (GPT-3), o modelo consome 500 ml de água. Se você estiver usando o GPT-4, que é um modelo mais complexo, essa quantidade é ainda maior.

Essa é uma situação que além dos impactos ambientais, envolve geopolítica e a complexidade econômica de empresas globais que expandem seus datacenters para diferentes regiões do mundo, levando consequências para comunidades locais.

Recentemente, um tribunal ambiental chileno reverteu parcialmente a licença do Google para construir um centro de dados em Santiago, após protestos de moradores preocupados com o impacto ambiental. Comemorado pela população, o projeto de US$ 200 milhões foi bastante questionado assim que descobriram que os servidores poderiam consumir milhões de litros de água em uma região que enfrenta problemas de seca há anos.

A transparência é crucial para a humanidade entender minimamente qual o custo ambiental de uma tecnologia cujo desenvolvimento está concentrado na mão de pouquíssimas organizações. Precisamos cobrar das empresas cada vez mais informações sobre o ecossistema de treinamento e execução de modelos fundacionais de IA.

Toda vez que um novo modelo é liberado, as empresas costumam publicar os "Model Cards", um documento que descreve o comportamento do modelo, detalhes do desempenho, como deve ser usado e suas limitações. Em algumas versões existe espaço para o detalhamento do consumo de energia. Uma boa prática pode ser exigir a obrigatoriedade desses dados e a adição de informações sobre o consumo de água tanto para o treinamento como para a execução do modelo.

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Em um momento em que vivemos na pele os efeitos das mudanças climáticas, é importante que a sociedade tenha maior transparência sobre como estamos caminhando no desenvolvimento tecnológico em relação ao meio-ambiente.

Alguns pesquisadores levantam o argumento do "paradoxo da IA sustentável". Da mesma forma que ela nos ajuda a entender melhor o ecossistema, as mudanças climáticas e a criar estratégias para mitigar seus danos, o seu funcionamento traz consequências negativas para tudo isso.

Eu sou um pouquinho mais otimista. Não desprezo o custo ambiental da IA, mas acredito que esse tipo de aplicação pode trazer muitos benefícios para otimizar nossas emissões, antecipar eventos extremos e trazer descobertas científicas que ajudem no processo.

O que precisamos é acompanhar de perto esse progresso, ano a ano, e coletar dados para saber qual lado da balança está pesando mais. Inclusive, me ocorreu uma ideia enquanto escrevia esta coluna. O mundo precisa de uma colaboração global de pesquisa para entender anualmente se (e como) a IA está ajudando ou atrapalhando que atinjamos os ODS (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável).

Pela magnitude e complexidade da iniciativa, este é um esforço que precisaria ser liderado pela própria ONU ou por alguma outra Organização Internacional, o que não é tão trivial, mas que certamente nos ajudaria a pensar em estratégias, políticas e regulações pautadas em evidências para um futuro mais inclusivo e sustentável com IA.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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